Capítulo 9 do livro "Desenvolvimento como liberdade"
Amartya Sen
“As fomes coletivas assolam
muitos países com espantosa inclemência [...] Além disso, a fome endêmica em
massa é um flagelo que perdura em muitas partes do mundo...” p 236
“Tentamos mostrar o erro de
julgar a natureza e a gravidade dos problemas de forma crônica, subnutrição e
fome coletiva apenas da perspectiva da produção de alimentos. Contudo, a
produção de gêneros alimentícios tem de ser uma das variáveis que podem, inter
alia, influenciar a prevalência da fome.” P 236
EXISTE UMA CRISE MUNDIAL DE
ALIMENTOS?
Citação de Malthus e a relação
entre a produção de alimentos e o crescimento da população em “Ensaio sobre a
população”, 1798.
A partir de dados atualizados da
produção de alimentos, publicados pela FAO, Amartya Sen mostra que “não só
inexiste um declínio real na produção de alimentos per capita (muito pelo
contrário), como também os maiores aumentos per capita ocorreram nas áreas mais
densamente povoadas do Terceiro Mundo...” p 238
“os problemas da África
subsaariana são principalmente reflexo de uma crise econômica geral [...] e não
especificamente uma ‘crise de produção de aliementos’. A história da produção
de alimentos insere-se em um problema maior que deve ser enfrentado mais
amplamente.” P 239
INCENTIVOS ECONÔMICOS E PRODUÇÃO
DE ALIMENTOS
Amartya Sen mostra como a
produção de alimentos aumentou mesmo com a quedo do valor dos alimentos até o
final da década de 90.
“Os preços dos alimentos
obviamente flutuam no curto prazo, e em consequência do aumento ocorrido em
meados da década de 1990 houve frequentes declarações alarmistas.” P 239
“É importante ver a produção de
alimentos como resultado da atuação humana e compreender os incentivos que
influenciam as decisões e ações dos indivíduos. Assim como outras atividades
econômicas, a produção comercial de alimentos sobre as oscilações dos mercados
e preços. Nesta época, a produção mundial de gêneros alimentícios tem sido
tolhida pela escassez da demanda e pelos preços declinantes; isso, por sua vez,
reflete a pobreza de algumas pessoas mais necessitadas.” P 240
ALÉM DA TENDÊNCIA DA PRODUÇÃO DE
ALIMENTOS PER CAPITA
“Mas tudo isso não elimina a
necessidade de desacelerar o crescimento da população. Pois, o desafio
ambiental não está apenas na produção de alimentos – há outras questões
relacionadas ao crescimento populacional e à superpopulação. [...] Na verdade,
pode ser imensamente contraproducente a tendência a concentrar-se apenas na
produção de alimentos, desconsiderando o intitulamento aos alimentos.” P 241-2
“Por exemplo, na fome coletiva de
Bengala em 1943, os administradores impressionaram-se tanto pelo fato de não
haver um declínio significativo na produção de alimentos (no que estava
corretos) que não foram capazes de prever – e, por alguns meses, chegaram mesmo
a recusar-se a reconhecer – a fome quando ela assolou Bengala com um
inclemência catastrófica. Assim como o ‘pessimismo malthusiano’ pode ser
enganoso para a previsão da situação mundial relativa aos alimentos, o que se
poderia chamar de ‘otimismo malthusiano’ tem o poder de matar milhões quando os
administradores caem na armadilha da perspectiva equivocada da produção de
alimentos per capita e ignoram os primeiros sinais de desastre e fome coletiva.
Uma teoria incorreta pode matar, e a perspectiva malthusiana da razão entre
alimentos e população já fez inúmeras vítimas.” P 242
CRESCIMENTO POPULACIONAL E A
DEFESA DA COERÇÃO
“Embora os temores malthusianos
sobre a produção de alimentos no longo prazo sejam infundados [... ] A
população mundial levou milhões de anos para atingir o primeiro bilhão, depois
precisou de 123 anos para chegar ao segundo, 33 para o terceiro, 14 para o
quarto e 13 para o quinto bilhão, com a promessa do sexto bilhão no decorrer de
mais onze anos...” p 242
“Esse é um assunto muito
controverso, mas existe uma escola de pensamento de grande expressão que
defende, ao menos implicitamente, uma solução coerciva para o problema. [...] O
problema da coerção suscita três questões distintas: 1) A coerção é, de algum
modo, aceitável nesse campo?; 2) Na ausência de coerção, o crescimento
populacional será inaceitavelmente rápido?; 3) A coerção tende a ser eficaz e
atuar sem efeitos colaterais danosos?” p 243
COERÇÃO E DIREITOS DE REPRODUÇÃO
“A oposição à coerção pode provir
tanto daqueles que preferem dar prioridade à família para decidir quantos
filhos terá [...] como daqueles que afirmam ser essa uma questão na qual é a
mãe quem deve ter a palavra final. [...] direitos ao aborto...” p 243
“Muitos filósofos políticos,
especialmente os utilitaristas, negaram que os direitos podem ter um valor
intrínseco – e possivelmente pré-legal. Jeremy Bentham declarou que a concepção
de direitos naturais é um ‘absurdo’, e que o conceito de ‘direitos naturais e
imprescritíveis’ é um absurdo em pernas de pau’, o que, na minha interpretação,
quer dizer um absurdo grandiloquente quem por uma elevação artificial e
arbitrária, ganhou proeminência.” P 244
“Em contraste, se os direitos
devem ser vistos não só como importantes, mas também como prioritários em
relação a qualquer cômputo de consequências, então eles devem ser aceitos
incondicionalmente. Na teoria libertarista, é exatamente isso o que acontece
com os direitos delineados, considerados apropriados não importando as consequências
que acarretem. Esses direitos, portanto, seriam partes apropriadas das
disposições sociais independentemente de suas consequências.’ P 244
“No campo dos direitos de
reprodução, o fato de serem considerados significativos não implica que sejam
tão soberanamente importantes que devam ser protegidos inteiramente mesmo que
venham a gerar desastres, miséria em massa e fome. Em geral, as consequências de
ter e exercer um direito precisam, em última análise, possuir alguma influência
sobre a aceitabilidade geral desse direito.” P 246
“Mas se o processo de explosão
populacional prosseguir, o mundo poderá enfrentar uma situação muito mais
difícil mesmo no que tange aos alimentos. Além disso, há outros problemas
relacionados ao crescimento rápido da população, incluindo a superpopulação
urbana e, obviamente, os desafios ambientais em âmbito regional e global. É
importantíssimo examinar quais perspectivas de uma desaceleração no crescimento
populacional podem ser contempladas agora.” P 246
ANÁLISE MALTHUSIANA
“Embora normalmente se atribua a
Malthus a análise pioneira sobre a possibilidade de a população tender a
crescer demais, a idéia de um crescimento populacional ininterrupto
teoricamente acarretar uma ‘diminuição contínua da felicidade’ foi, na verdade,
expressa antes de Malthus, pelo matemático e grande pensador iluminista
Condorcet, o primeiro a apresentar a essência do cenário que fundamenta a
análise ‘malthusiana’ do problema da população: ‘O aumento do número de homens,
ultrapassando seus meios de subsistência’, resultaria em ‘uma diminuição
contínua da felicidade e da população, um movimento efetivamente retrógrado,
ou, no mínimo, uma espécie de oscilação entre ventura e infortúnio’.” P 246
“A discordância entre os dois
[Condorcet e Malthus] ocorreu em suas respectivas concepções sobre o
comportamento acerca da fecundide. Condorcet previu uma redução voluntária nas
taxas de fecundidade e a emergência de novas normas para uma família menos
numerosa, com base no ‘progresso da razão’.” P 246
“Malthus julgou tudo isso
extremamente improvável. Em geral, viu pouca chance de resolver problemas
sociais por meio de decisões arrazoadas das pessoas envolvidas. [...] Malthus
demonstrou um ceticismo especial quanto ao planejamento familiar voluntário.
[...] ele não viu perspectivas reais de que essa restrição viesse a ser
voluntária.” P 247
“Foi em razão dessa descrença no
caminho voluntário que Malthus identificou a necessidade de uma redução forçada
nas taxas de crescimento populacional, redução que, em sua opinião, sobreviria
com a coação da natureza. [...] O elo básico no argumento é a convicção de
Malthus – e isso é o aspecto importante – de que a taxa de crescimento
populacional não pode ser efetivamente reduzida por nada ‘além da dificuldade
de obter com adequada abundância as necessidades de vida’. A oposição de
Malthus às Leis dos Pobres e ao auxílio aos indigentes relacionava-se à sua
crença nessa conexão causal entre pobreza e baixo crescimento populacional.” P 248
“Embora possa haver alguma
verdade nessa idéia [‘o desenvolvimento é o melhor anticoncepcional’] duvidosa,
o desenvolvimento possui vários componentes, que estiveram presentes
conjuntamente no Ocidente, incluindo o aumento da renda per capita, a expansão
da educação, a maior independência econômica das mulheres, a redução das taxas
de mortalidade e a disseminação das oportunidades de planejamento familiar...”
p 248
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO OU
SOCIAL
Citação de Gary Backer
“as teorias sociais sobre o
declínio da fecundidade consideram que as mudanças de preferências decorrem do
desenvolvimento social, como a expansão da educação em geral e da educação do
sexo feminino em particular.” P 249
“Há também a questão simples da
disponibilidade de recursos para o controle da natalidade e a difusão de
conhecimentos e tecnologia nessa área.” P 249
GANHO DE PODER DAS MULHERES
JOVENS
“Uma linha de análise que emergiu
com grande influência em anos recentes [...] atribui ao ganho de poder das
mulheres um papel central nas decisões das famílias e na gênese de normas
comunitárias.” P 250
“Entretanto, precisamos definir
com mais clareza quais seriam os parâmetros críticos para mudar a tendência da
fecundidade. Existe hoje uma profusão de evidências estatísticas, baseadas em
comparações entre países e regiões diversas [...], que vinculam a educação das
mulheres (incluindo a alfabetização) à redução da fecundidade em diferentes
países do mundo.” P 250
“um efeito significativo sobre a fecundidade
são (1) a alfabetização das mulheres e (2) a participação feminina na força de
trabalho.” P 251
EXTERNALIDADE, VALORES E
COMUNICAÇÃO
QUE EFICÁCIA TEM A COERÇÃO?
“Políticas como a da ‘família com
filho único’ têm sido implementadas em vastas áreas da China desde as reformas
de 1979. Além disso, o governo com frequência se nega a fornecer moradia e
benefícios afins às famílias com muitos filhos, com isso penalizando as
crianças e os adultos dissidentes.” P 252
“Além da questão fundamental da
liberdade reprodutiva e outras liberdades, há ainda consequências a considerar
do controle compulsório da natalidade. [...] elevando assim a taxa de
mortalidade infantil [...] preferência por filhos do sexo masculino...” p 253
“Terceiro, toda mudança no
comportamento reprodutivo que seja ocasionada por coerção não necessariamente
será estável.” P 254
“Quarto, absolutamente não está
claro que redução adicional na taxa de fecundidade foi de fato obtida na China
graças a esses meios coercitivos.” P 254
Caso da redução da fecundidade de
Keral na Índia, em relação à China
EFEITOS COLATERAIS E VELOCIDADE
DA REDUÇÃO DA FECUNDIDADE
“Em 1979, quando a política do
filho único foi introduzida na China, Kerala apresentava uma taxa de
fecundidade mais elevada do que a da China: 3,0 em comparação com 2,8 na China.
Em 1991, sua taxa de fecundidade, 1,8, estava tão abaixo da registrada na
China, 2,0, quanto estivera acima em 1979. Apesar da ‘vantagem’ extra da
política do filho único e de outras medidas coercitivas, a taxa de fecundidade
parece ter diminuído muito mais lentamente na China do que em Kerala, mesmo
nesse período.” P 256
AS TENTAÇÕES DA COERÇÃO
“É comum o argumento de que, em
um país pobre, seria um erro preocupar-se demasiadamente com a inaceitabilidade
da coerção – um luxo que apenas países ricos podem se dar – e que os pobres não
se incomodam realmente com a coerção. Não está nem um pouco claro em que
evidências esse argumento se baseia. As pessoas que mais sofrem com essas
medidas coercivas [...] com frequência estão entre as mais pobres e
desfavorecidas. [...] mesmo práticas bárbaras como tentar reunir mulheres
pobres em campos de esterilização , mediante vários tipos de pressão, têm sido
usadas em regiões rurais no norte da Índia ao aproximar-se o prazo para que se
cumpram as ‘metas de esterilização’.” P 257-8
“Gandhi procurou implementar o
controle compulsório de natalidade juntamente com a suspensão de vários
direitos legais e liberdades civis.” P 258
OBSERVAÇÃO FINAL
“É importante reduzir a fecundidade
não apenas por suas consequências para a prosperidade econômica, mas também em
razão do impacto da fecundidade elevada na diminuição da liberdade das pessoas –
particularmente das mulheres jovens – de escolher o próprio padrão de vida de
acordo com seus valores.” P 260
“A solução do problema da
população requer mais liberdade, e não menos.” P 260
Fichamento do capítulo 9: População, alimento e liberdade. Em: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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