SYLVIE FAINZANG[1]. ENTRE PRÁTICAS E
RECURSOS TERAPÊUTICOS: As problemáticas de
um itinerário de pesquisa. Antropolítica: Revista Contemporânea de
Antropologia e Ciência Política. Número 15. Niterói, 2o semestre
2003.
-
“Assim sendo, pretendo mostrar, nesta exposição, como
diferentes pesquisas, dotadas de objetos, situações de campo e problemáticas
variadas, isto é, que se iniciam de forma distinta, podem ser perpassadas por
questões convergentes e até mesmo permanentes.” P20
-
“Meu interesse particular pelo estudo dos sistemas
simbólicos que estão no fundamentos das práticas sociais nasceu precisamente da
leitura deste livro de Marshall Sahlins (1980), [...] para todos [...] que se
interessam pelas dimensões culturais que organizam os comportamentos humanos.”
A gestão intelectual e prática da
doença em uma sociedade oeste-africana
-
“Iniciei minha pesquisa na África junto aos bisa, [...] (hoje burkina faso) [...] centrei minhas
pesquisas sobre as representações e as práticas relativas à doença [...] me
interroguei particularmente sobre os meios pelos quais a sociedade se encontra
dotada, em termos de gestão prática e intelectual da doença, para assegurar
controle sobre os indivíduos. [...] Um espaço importante foi reservado aos
estudos dos modelos explicativos da doença e dos acontecimentos em geral, aos
quais os processos de acusação que eles particularmente suscitam e as práticas
terapêuticas estavam estreitamente articulados.” P 20-1
-
“A percepção social do evento-doença, que fundamenta a
consulta adivinhatória, conduz o adivinho a relacionar os fatos e gestos dos
consultantes e experiências passadas ou à projeção do futuro e, assim, elaborar
relações causais entre fenômenos muitos diversos entre si.” Freqüentemente a
doença é concebida como sanção infligida por poderes sobrenaturais, devido à
infração às regras sociais, transgressão de tabus ou exprime a percepção de um
conflito entre indivíduos ou entre grupos. Woso, príncipe transcendente
ao universo. “Pensar a doença é tentar ordená-la sob encadeamento temporal e a
lógica de eventos múltiplos. É legitimar a obediência a comportamentos sociais
específicos, situados sob pontos diversos da seqüência causal, suscetíveis de
lhe modificar o curso. [...] a instituição adivinhatória assume um papel de
controle social.” P 21-2
-
“A diferença é que uns (os comportamentalistas) o
produzem, enquanto outros (os adivinhos) nada mais fazem do que interpretar os
eventos e designá-los enquanto tais. Assim, é a gestão intelectual do evento
que determina as práticas sociais.”
-
“se levarmos em consideração precisamente a incidência
do uso da categoria Woso sobre as práticas sociais, perceberemos, por um
lado, que certas representações da doença são totalmente afuncionais e, por
outro, que os indivíduos recorrem, às vezes, à categoria Woso para
escapar à análise advinhatória, exprimindo, assim, uma resistência ao controle
social.” P 22
A interpretação da doença em um
distrito da região parisiense
-
“Assim, no Ocidente, como na África, a interpretação que
os sujeitos fazem da doença e os motivos que permeiam os recursos terapêuticos
colocam em jogo os sistemas de pensamento e representações do real,
extrapolando enormemente o domínio estritamente médico. O antropólogo deve
então se dedicar a estudar e decodificar estes aspectos.” P 23
-
“procurei colocar em relevo, a partir do que o estudo
da antropologia da doença pode nos trazer sobre estas sociedades, quais são os
pontos comuns nos seus respectivos sistemas simbólicos. [...] E que, para além
das diversidades culturais, podemos identificar aspectos universais no que diz
respeito à relação com o mal, com a doença e com os infortúnios em geral. O
objetivo desta pesquisa era perceber como as representações da doença se
integram a outros sistemas simbólicos; revelar as lógicas que conduzem aos
recursos terapêuticos, em particular, estudar a articulação e a coerência entre
representações da doença e estratégias terapêuticas; e perceber como estas
últimas se articulam, por sua vez, com a especificidade cultural dos diferentes
grupos.” P 23-4
-
“Um dos grandes eixos da minha pesquisa consistiu,
portanto, em enumerar e trazer à tona os diferentes modelos explicativos da
doença. Para tanto, dei atenção particular aos processos de acusação
desencadeados pela sua aparição; e aos sistemas de pensamento que os fazem
surgir. Enfim, de maneira mais ampla, tentei entender suas condições de
existência.”
-
“Os resultados da pesquisa me permitiram constatar que
o discurso social sobre a doença pode ser visto como uma linguagem de tensões
sociais, fornecendo o meio de expressão da tensão entre os indivíduos e entre
os grupos. [...] Ele é revelador de conflitos interpessoais e sociais.
Conseqüentemente, dei-me conta de que, nas sociedades em que a bruxaria tem
relevância (seja na África ou na França), falar de doença é anunciar a relação
do doente com os outros [...] O discurso sobre a doença funciona, portanto,
como uma grade de leitura de relações sociais e se exprime segundo modalidades
específicas, de acordo com o pertencimento cultural dos sujeitos.” P 24-5
-
“O conjunto de estudos de casos realizados nos
diferentes meios culturais estudados me conduziu a reconhecer quatro modelos de
acusação: 1. a auto-acusação; 2. a acusação de um outro próximo (ou familiar);
3. a acusação de um outro distante (ou estranho); 4. a acusação da
‘sociedade’.”
-
“Assim, o estuda da causalidade nas sociedades de
linhagem revela a referência massiva ao modelo de auto-acusação e ao modelo de
acusação do Outro. Em contrapartida, não se encontram nos discursos produzidos
pelas sociedades de linhagem os modelos de acusação da sociedade, tais como
eles são formulados pelas sociedades ocidentais. [...] os discursos
interpretativos africanos revelam uma resistência à reprodução almejada pela
etiologia social, eles jamais colocam em questão os valores partilhados. Eles
tendem somente a promover estratégias pessoais, que não visam ser denunciadoras
da ordem social. Distinguem-se, assim, dois modelos de causalidade: uma
causalidade subversiva e uma reprodutiva.”
-
“Mas ela [minha perspectiva] procurou igualmente se
distinguir daquela elaborada por antropólogos, para os quais não existe
diferença entre experiência científica e experiência mágica. Meu propósito foi,
ao contrário, mostrar a profunda analogia entre os modos de pensamento
tradicionais africanos e os modelos teóricos da sociedade ocidental.” P 25-6
-
“A observação revela que a interpretação que os
sujeitos têm da doença possui uma incidência sobre os recursos terapêuticos,
assim como sobre os seus comportamentos quotidianos.”
-
“Como o discurso sobre a doença corresponde a uma
grande leitura das relações, que o sujeito estabelece com os seus próximos ou
com outros grupos sociais, a significação adotada não pode ser imediatamente
abandonada. Ignorá-la é abandonar a acusação pela qual as relações se
estabelecem. É negar a validade do olhar que o sujeito incorpora sobre a sua
inscrição social. (FAINZANG, 1988, 2000).”
-
“Em cada um destes casos, a conduta terapêutica do
doente é função da lógica interpretativa à qual ele adere. A propensão do
doente a dar um sentido à sua doença e a lhe atribuir uma causa leva-o a
procurar a medicina que lhe oferecerá – pelo diagnóstico que ela elabora – o
máximo de coerência com sua própria percepção da doença. Em decorrência, a
prescrição que possa ser considerada como a mais adequada para responder
eficazmente ao seu caso particular.”p 27
Sexualidade e reprodução no meio
africano imigrante
-
“o Ministério dos Direitos da Mulher me solicitou a
realização de uma pesquisa sobre as mutilações sexuais no meio africano
imigrante. Assim, entrei em contato com mulheres originárias do Mali e do
Senegal com o objetivo de discutir com elas as práticas relativas à
clitoridectomia, [...] estas mutilações revelavam o desejo de inscrever as
relações sociais sobre os corpos.”
-
“Os materiais coletados revelam, de fato, o que o
‘trabalho’ realizado sobre os corpos não visa somente confirmar a diferença
biológica entre os sexos, mas também corrigir o sexo biológico de maneira a
tornar possível, para a pessoa socializada como feminina ou masculina, o
estatuto que lhe é atribuído. E, nessa medida, reduzir ou suprimir o que, na
mulher, é concebido como equivalente do sexo masculino, criando então condições
(fisiológicas) de dominação (social) do homem sobre a mulher.” Relação entre
excisão e circuncisão. P 28
Representações e gestão do
alcoolismo em um movimento de antigos bebedores
-
“Assim que terminei minhas pesquisas sobre a
interpretação da doença em Ville-du-Bois, fui levada a dar um certo
direcionamento ao objeto de estudo, passando da doença em geral para a ‘doença
alcoólica’ em particular, e, mais precisamente, a um movimento de antigos
bebedores: Vie Libre.” P 29
-
“Assim, segui a questão da interpretação da doença,
estudando os modelos explicativos do alcoolismo, conforme são elaborados no
seio do movimento dos antigos bebedores Vie Libre. Enquanto para a maioria dos
etnólogos tomar o alcoolismo como objeto é levar em consideração o alcoolismo
como um modo de vida, ou o traço de uma cultura, eu, ao contrário, tratei de
restituir o ponto de vista êmico de uma associação de antigos bebedores,
retendo a equivalência ‘alcoolismo-doença’.” P 30
-
“Conduzi, desta forma, uma reflexão sobre a teoria da
causalidade elaborada a propósito do alcoolismo por este movimento. Todavia, os
discursos explicativos do alcoolismo não se reduzem ao discurso doutrinal.
[...] A questão da relação que o indivíduo mantém com a doença se integra
inevitavelmente à problemática da relação frente ao Outro. [...] Desse modo,
também procurei compreender o que representa e simboliza o álcool nesta
perspectiva. Trata-se de saber se a eficácia de adesão do sujeito a este tipo
de associação é tributária da adoção de certos esquemas de causalidade e,
eventualmente, de uma reconversão no plano da percepção das causas do
alcoolismo e da imputação de responsabilidades, questão que se relaciona com a
dos sistemas interpretativos da doença. [...] Assim, a pesquisa permitiu
observar a imbricação de vários tipos de discursos, cuja coexistência se torna
possível pela sua adaptação tanto ao discurso doutrinal do movimento Vie Libre,
quanto à responsabilidade que ele atribui ao álcool, enquanto encarnação
metonímica da sociedade.” P 30-1
-
“O estudo do sistema simbólico articulando as
representações dos efeitos do álcool sobre o corpo do alcoolista (em
particular, sobre importantes órgãos como o cérebro, bem como nervos e sangue)
e o papel destas desordens fisiológicas sobre a formação de seu comportamento
social permitiram compreender, por exemplo, as razões das reticências
manifestadas pelos homens alcoolistas com o tratamento psiquiátrico.”
-
“Vie Libre gerencia, de uma maneira específica, a
identidade do doente.” P 32
-
“Por outro lado, o trabalho de campo me permitiu
constatar que, no Vie Libre, cônjuges dos doentes, mesmo que não bebedores,
tendem a se considerar doentes tanto quanto os próprios alcoolistas, atribuindo
sua doença ao contágio. [...] Este dado me conduziu à investigação sobre o
conteúdo da idéia de contágio. As representações do alcoolismo como doença
‘contagiosa’ [...] enraizadas na noção de doença coletiva desenvolvida pelo
movimento, não são resultantes de um desconhecimento das modalidades de
emergência desta ‘doença’, mas da tradução de uma concepção de alcoolismo que
lhe atribui a capacidade de afetar fisiologicamente os indivíduos que se
encontram em uma relação social estreita com o doente.”
-
“Minha tarefa era, portanto, compreender o sentido de
condutas aparentemente incoerentes (como, por exemplo, o fato de um doente
recorrer a uma instância terapêutica que ele julgue menos eficaz) e saber o que
está em jogo na determinação destes recursos. [...] O estudo das situações em
que esta defasagem pudesse ser observada evidenciou os motivos ou os
empreendimentos capazes de explicá-la, mediante a proposta da noção de
‘estratégias paradoxais’. Por esta noção, designei tanto as condutas adotadas
com fins terapêuticos, mas geradoras de condições patológicas capazes de
reforçar o mal contra o qual o sujeito procura lutar [...] Trata-se de
estratégias adotadas, de maneira explícita, para resolver um problema de saúde,
e, de maneira implícita, para responder a outras necessidades, dando lugar a
uma outra lógica.” P 32-3
-
“Hoje, todavia, parece-me necessário distinguir: de uma
parte, as condutas elaboradas com fins terapêuticos, mas cujos efeitos são
contrários; e, de outra parte, as condutas que são elaboradas com outros fins
não terapêuticos, porque elas são supradeterminadas por outras questões (mas
seguidamente de ordem relacional).”
As atitudes culturais em face da
receita e dos medicamentos
-
“[...] decidi estudar as condições de uso da receita
médica [...]” p 34
-
“fixei-me sobre as relações entre representações e
práticas sociais relativas à doença, desejei compreender a relação entre o
pertencimento cultural e as estratégias terapêuticas, limitando o pertencimento
cultural à origem religiosa, e as estratégias terapêuticas às condutas quanto
às prescrições médicas.”
-
“O conjunto dos resultados obtidos revela a relação que
estes pacientes, e diferentes grupos culturais, mantêm com a autoridade médica,
comparável com a atitude dos pacientes praticantes diante da autoridade
religiosa. Além do nível sociocultural dos indivíduos, observamos, por exemplo,
mais por parte dos pacientes de origem católica e muçulmana do que por parte
dos pacientes de origem judia e protestante, uma submissão mais forte em
relação ao médico.” P 35
A mentira na relação
médico-paciente
-
“Portanto, decidi investigar particularmente a prática
da mentira e estudá-la como uma prática social como tantas outras, para
analisar os resultados e suas significações de um ponto de vista antropológico.
Esta prática ainda me interessava pelo fato de que ela correspondia ao que eu considerava como ‘condutas paradoxais’.
[...] A mentira se apresenta como um paradigma da conduta paradoxal, pois ela
consiste em esconder a realidade e, conseqüentemente, em impedir o médico de
exercer plenamente seu papel.” P 36
-
“No entanto, a mentira não é uma conduta apenas dos
pacientes, ela é também praticada pelos médicos. [...] por mais racional que
ela possa ser (por razões sociológicas e/ou terapêuticas, a mentira do médico é
comumente objeto de uma racionalização, uma vez que é pelo ‘bem’ do paciente
que o médico mente) [...] Enfim, a mentira apresenta-se como um produto da
relação médico-paciente e escapa à explicação pela razão terapêutica, uma vez
que ela é subentendida pelas lógicas culturais e sociais.” P 36-7
[1]
Pesquisadora do INSERM – Institut National de la Santé et Recherche Médicale e
do CERMES – Centre de Recherche Médécine, Sciences, Santé et Societé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário