CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1957.
“Le mensonge héroique est une lâcheté. Il n’y a qu’un
héroisme au monde: c’est de voir le monde tel qu’il est, et de l’aimer.” Romain
Roland
PREFÁCIO DO AUTOR
“se fizermos um estudo
comparativo da fome com as grandes calamidades que costumam assolar o mundo – a
guerra e as pestes ou epidemias, - verificaremos, mais uma vez, que a menos
debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome.” P 20
“Quais são os fatores ocultos
desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? [...] Trata-se de um
silêncio premeditado pela própria alma de nossa cultura: foram os interesses e
preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada
civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco
aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a
esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a
fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um
tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por
todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta
humana.” P 20
“A demonstração muito efetiva da
mudança radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na
realização da Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das
conferências convocadas pelas Nações Unidas para tratar de problemas
fundamentais à reconstrução do mundo de após-guerra. Nesta conferência reunida
em 1943, e que deu origem à atual Organização de Alimentação e Agricultura das
Nações Unidas – a F.A.O. – quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de
eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as
condições reais de alimentação dos seus respectivos povos....” p 23
“Foi diante desta situação que
resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva [...] Para tal fim
pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome.” P
24
“Neste ensaio de natureza
ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes
grupos humanos, ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um
lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu
tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro
lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura
econômico-social dos diferentes grupos estudados.” P 25
“Não é esse tipo de fome
[individual], simples traço melodramático no emaranhado desenho da fome
universal, que interessa ao nosso estudo. O nosso objetivo é analisar o
fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as
grandes massas humanas.” P 26
Starvation – fome em inglês
associada a áreas de miséria
“... fome parcial, da chamada
fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos
nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam
morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.” P 27
“Buscando essa valorização dos
fatores de categoria biológica, não quer dizer que desprezemos a importância
dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria do latifundismo
agrário-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira.
Isto é inegável.” P29
“Não foram razões de ordem
sentimental, nem de supervalorização patriótica que nos ditaram essa conduta:
foram razões de ordem didática. O Brasil constitui o nosso campo de observação
e de experimentação diretas do problema. [...] O seu vasto território, com
diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial superúmido da
Amazônia até o tropical seco e semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical
com seus variados tipos de organização econômica, apresenta condições
excepcionais para uma larga investigação do problema da alimentação nos
trópicos. Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para
funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social deste problema.” P
32
Prefácio assinado em 1956, Rio de
Janeiro.
INTRODUÇÃO
“Quando se lê ou se ouve falar em
fomes coletivas, em angustiadas massas humanas atacadas e morrendo à falta de
um pouco de comida, as primeiras imagens que assaltam a nossa consciência são
as imagens típicas do Extremo Oriente. [...] Massas pululantes de esquálitos
coolies chineses.” P 39
“Imagens dos campos de
concentração e das cidades e dos campos europeus devastados pela tirania nazi
durante a última guerra mundial.” P39
“... para aqueles que têm
conhecimento da fome apenas através dos jornais, reduzem-se a estas duas
grandes regiões – o Oriente exótico e a Europa devastada – as áreas de
distribuição da fome...” p39-40
“Na realidade, a fome coletiva é
[...] um fenômeno geograficamente universal [...] se os estragos desse flagelo
na América não são tão dramáticos [...] esses estragos se fazem sentir mais
sorrateiramente, minando a nossa riqueza humana numa persistente ação
destruidora, geração após geração.” P 40
“Os inquéritos sociais e os levantamentos
estatísticos levados a efeito em diferentes zonas do continente vieram mostrar
que por toda parte as populações americanas continuam expostas às consequências
funestas da subnutrição e da fome.” P 40
“Carências protéicas, carências
minerais, carências vitamínicas.” P 41
“Milhões de seres humanos o têm
vivido durante séculos silenciosamente, com uma resignação que aproxima, sob
este aspecto, os povos americanos dos povos do Oriente.” P 42
“Numas regiões [ do Brasil], os
erros e defeitos são mais graves e vive-se num estado de fome crônica; noutras,
são mais discretos e tem-se a subnutrição.” P 42
“O país abrange pelo menos cinco
diferentes áreas alimentares, cada uma delas dispondo de recursos típicos, com
sua dieta habitual apoiada em determinados produtos regionais e com seus
efetivos humanos refletindo, em muitas de suas características, tanto somáticas
como psíquicas, tanto biológicas como culturais, a influência marcante dos seus
tipos de dieta. Cinco áreas bem caracterizadas e assim distribuídas: 1) Área da
Amazônia; 2) Área da Mata do Nordeste; 3) Área do Sertão do Nordeste; 4) Área
do Centro-Oeste; 5) Área do Extremo Sul...” p 43
“Para que uma determinada região
possa ser considerada área de fome, dentro do nosso conceito geográfico, é
necessário que as deficiências alimentares que aí se manifestam incidam sobre a
maioria dos indivíduos que compõem seu efetivo demográfico.” P 44
II
ÁREA AMAZÔNICA
“A região da Amazônia representa,
sob o ponto de vista ecológico, um tipo unitário de área alimentar muito bem
caracterizado, tendo como alimento básico a farinha de mandioca.” P 45
“Região com uma população de tipo
homeopático, formada de gotas de gente salpicadas a esmo na imensidade da
floresta, numa proporção que atinge em certas zonas à concentração ridícula de
um habitante para cada 4 km quadrados de superfície. [...] Sem forças
suficientes para dominar o meio ambiente, para utilizar as possibilidades da
terra, organizando um sistema de economia produtiva, as populações regionais
têm vivido até hoje, no Amazonas, quase que exclusivamente num regime de
economia destrutiva. Da simples coleta dos produtos nativos, da caça e da
pesca. Da colheita de sementes silvestres, de frutos, de raízes e de casca de
árvores. Do látex, dos óleos e das resinas vegetais.” P 46-7
“Apenas em zonas limitadas e
utilizando processos rudimentares se estabeleceu uma cultura primitiva de
certos produtos de alimentação, como as da mandioca, do milho, do arroz e do
feijão.” P 47
Chibé
Beijus
“A terra é quase que inteiramente
açambarcada pelas plantas, restringindo-se a vida animal sobre o solo às
formigas e outros insetos, às cobras e aos macacos e a variedades de espécies
de pássaros. São, pois, limitadas as possibilidades de caça para abastecimento
alimentar. A pesca rende muito mais e contribui para a dieta local com
elementos mais ricos e variados. Sejam peixes de água doce [...] sejam
crustáceos ou moluscos, camarões, siris, avius, caranguejos e ostras. Do que
também fazem abundante uso os nativos para sua alimentação é das tartarugas,
das quais consomem tanto a carne como os ovos.” P 50
“A floresta é um obstáculo à
criação de gado.” P 51
“Apenas recentemente, através do
Instituto Agronômico do Norte foi introduzido em Marajó o búfalo africano,
animal rústico e de relativas possibilidades de adaptação econômica ao meio
hostil a raças selecionadas e de alta produção, seja de carne, seja de leite.
Ainda assim, e contrariando o esforço de racionalização da pecuária, essa
rusticidade do búfalo está sendo explorada no sentido de não lhe ser prestada
qualquer espécie de assistência zootécnica, e as adaptações a que o meio lhe
obriga, nem sempre são favoráveis aos interesses econômicas e aos fins
sociais.” P 52
“Estas limitações que a natureza
impõe à pecuária, a falta de transporte entre zonas de criação e o resto da
região amazônica, não facilitam o seu abastecimento nem de carne nem de leite.
[...] Carne, só seca e salgada.” P 53
“Se a inundação destrói muitas
vezes o duro trabalho agrícola também traz dissolvida nas águas das cheias o
sedimento rico em elementos minerais e orgânicos que ficarão depositados sobre
o solo quando as águas baixarem.” P 53-4
“As populações do Amazonas sempre
classificaram os rios da região em dois grupos: os rios negros e os rios
brancos. Os negros tendo as águas translúcidas, carregadas apenas dos reflexos
profundos das sombras escuras da floresta, e os brancos com as suas águas
turvas, barrentas, ricas de materiais de aluvião. São as águas dos rios brancos
as que fertilizam o solo equatorial do Amazonas. [...] A verdade é que o
excesso de chuvas lavando permanentemente este solo, aliados a outros fatores
de intemperismo regional, o empobrece de maneira alarmante, e a agricultura sem
a adubação das enchentes esgota as suas reservas numa rapidez assustadora. Esta
é uma das razões que sempre obrigaram as populações indígenas a viver nesta
região num regime seminômade, derrubando a floresta num ponto, semeando um
pouco de milho, de arroz e de mandioca, colhendo a seguir o produto e
abandonando a roça para abrir outra clareira mais adiante. É que o rendimento
de uma segunda plantação já não compensaria o trabalho nem permitiria o
abastecimento suficiente do grupo, expondo-o aos perigos da fome aguda.” P
54-55
“É preciso não esquecer que na
elaboração destas comidas entram certos molhos preparados com sucos de ervas
locais e de pimentas [...] Os indígenas sempre foram grandes comedores de
pimenta [...] O consumo de verduras e de legumes verdes foi muito baixo nesta
região. O complicado cultivo da horta está muito acima da técnica agrícola
local [...] As frutas também, com exceção do açaí, entram em muita pouca
quantidade no regime alimentar habitual.” P 55
Buriti
Castanha do Pará
“A análise biológica e química da
dieta amazônica revela um regime alimentar com inúmeras deficiências nutritivas
[...] É uma alimentação parca, escassa, de uma sobriedade impressionante.” P 57
“Para bem compreendermos quais os
principais defeitos deste tipo de alimentação da Amazônia, precisamos analisa-la
de acordo com os modernos conhecimentos de nutrição e de acordo principalmente
com as variantes fisiológicas que o clima impõe ao metabolismo nas condições de
vida tropical. Variantes que dão ao metabolismo do homem dos trópicos um ritmo
especial e alteram inteiramente os limites quantitativos de suas necessidades
nos diferentes princípios alimentares.” P 58
“O clima amazônico de tipo
superúmido, com uma umidade relativa do ar que anda quase sempre pela casa dos
90%, alcançando a todo momento o ponto de saturação do ar em umidade,
condiciona forçosamente ao organismo humano uma sensível baixa do seu
metabolismo. Quem conhece o mecanismo da formação e da perda de calor nos seres
vivos compreende logo que esta diminuição do organismo em suas combustões
internas representa um processo de adaptação funcional, um processo prático de
evitar a sua destruição por superaquecimento, diante das dificuldades que o
meio ambiente opõe às perdas do calor animal. No excesso de temperatura e de
umidade reinantes, o organismo não dispõe de outros meios para se desfazer do
seu calor interno senão o de diminuir a sua formação, isto é, baixar o seu
metabolismo.” P60
“Na insuficiência alimentar
quantitativa e na forçada adaptação orgânica a esta situação permanente,
residem as explicações da apregoada preguiça dos povos equatoriais. A preguiça
no caso é providencial: é um meio de defesa de que a espécie dispõe para
sobreviver, e funciona como o sinal de alarma numa caldeira que diminui a
intensidade de suas combustões ou para mesmo automaticamente, quando lhe falta
o combustível.” P 61
“O déficit proteico resulta da
quase que ausência de alimentação absoluta, no regime alimentar desta gente,
das fontes de proteínas animais: carne, leite, queijo e ovos. [...] Já vimos
que destas fontes de proteínas completas as populações locais apenas dispõem da
carne de peixe, e isto mesmo de maneira irregular e em quantidade insuficiente.
[...] Seria necessário, não só pescar em quantidade bem maior do que se faz
atualmente, como industrializar o produto da pesca sob a forma de peixe seco,
salgado ou desidratado... “ p 61-2
“Quase que só dispondo de fontes
de proteínas vegetais, o regime local é deficiente em certos ácidos aminados.
Deficiência que se revela de logo pelo crescimento insuficiente, pela estatura
abaixo do normal...” p 62
“O que salva o amazonense é que
ele não come farinha pura como o mexicano se alimenta, dias e dias,
exclusivamente de milho. Um pouco de feijão, de arroz ou de batata e vez por
outra o seu peixe, ou seu tracajá ou jabuti, sempre o homem da Amazônia obtém
para variar o seu regime, diminuindo desta forma a deficiência proteica da
farinha.” P 63
“Ao lado das deficiências
proteicas ocorrem certas deficiências em sais minerais bem graves para as
populações amazônicas. O primeiro fator dessas carências minerais é a pobreza
do solo regional [...] As chuvas contínuas [...] agindo paralelamente à
temperatura elevada, estimulam a ação de microrganismos do solo, decompondo com
extrema velocidade a matéria orgânica e o húmus ali existentes...” p 64
“Quando a este fator – a pobreza
mineral dos alimentos – se juntam erros de dietética, como é o caso da região
amazônica, aumentam as probabilidades de incidência das carências minerais no
homem. Destas carências, as mais acentuadas nesta zona são as de cálcio, ferro
e cloreto de sódio.” P 66
“O solo é pobre em cálcio. As
águas e os alimentos ali produzidos são também pobres em cálcio.” P 67
“O que é de admirar, à primeira
vista, é que com tal exiguidade de cálcio em sua alimentação, não sofram de
raquitismo endêmico os habitantes desta área, com crianças de pernas tortas e
de ‘tórax de pombo’, de cabeças deformadas com seus ossos amolecidos à falta de
cálcio que lhes dê consistência. Nada disse existe na região do Amazonas. [...]
A explicação do fato encontra-se na extraordinária riqueza de insolação
regional que é fonte de vitamina D em cuja presença se torna difícil o
aparecimento do raquitismo.” P 67
“Se não há o raquitismo
exteriorizando a carência em cálcio, há, no entanto, uma grande incidência de
cáries dentárias...” p 68
“Por conta do déficit em ferro
apresenta-se na região um tipo característico de anemia, que durante muito
tempo foi atribuído à ação direta do clima. [...] Hoje se sabe que essa anemia
é apenas uma consequência da fome específica em ferro necessário para
fabricação dos glóbulos vermelhos. Os trópicos não exigem mais ferro nem
destroem maior número de glóbulos [...] A alimentação nas várias áreas
tropicais é que não subscreve, em geral, uma taxa adequada às necessidades normais
do organismo...” p68-9
“o fenômeno da geofagia ou
geomania, do hábito ou mania de comer terra. Hábito que a nosso ver traduz
quase sempre um tipo de fome específica, ...” p 69
“A anemia tropical não é,
portanto, uma fatalidade climática; não é um produto direto do clima agindo
sobre o organismo humano num determinismo inexorável.” P 69
“O déficit em cloreto de sódio é
bastante acentuado e resulta tanto de fatores naturais como culturais. [...]
Clima equatorial que, acarretando uma transpiração excessiva, espolia o
organismo em estremo das suas reservas de cloreto de sódio. [...] Para
compensar tamanha perda de cloreto de sódio seria necessário ingerir alimentos
excessivamente salgados ou contendo em sua composição química altas doses deste
princípio nutritivo. [...] A alimentação amazônica, na qual ainda hoje
predominam intensamente os hábitos e tradições indígenas, é uma alimentação com
pouco ou nenhum sal. O tempero que o índio sempre admirou foi a pimenta.” P
70-1
“os patologistas europeus tinham
notado que, em casos de uma doença que provoca uma fadiga aniquilante – a
insuficiência supra-renal – sempre se apresenta um desequilíbrio
sódio-potássico neste mesmo sentido. É por isto que nós afirmamos ocorrer nos
trópicos uma espécie de insuficiência supra-renal climática, pelo menos em sua
síndrome humoral, que só pode ser combatida com uma alimentação muito rica em
sal. Vemos assim que, se nos casos do déficit em ferro a ação do clima é
remota, fazendo-se sentir indiretamente, no caso do sódio é imediata, é direta.
Estes dois exemplos mostram como é complexo o fenômeno da aclimação. Como é
ingênuo afirmar-se ou negar-se em bloco, sem maiores discriminações, a ação dos
climas sobre o homem, em obediência a escolas sociológicas, limitadas a pontos
de vista unilaterais.” P 73
“Qual a razão pela qual o branco
se fadiga mais depressa do que o negro ou o índio? Pode haver várias
explicativas, mas o que não resta dúvida é que um dos fatores desta diferença
fundamental reside no fato de que o índio e, principalmente, o negro perdem
muito menor quantidade de cloreto de sódio através da sudação do que o branco.
[...] Trata-se realmente de uma superioridade biológica? Não. Primeiro, que não
existem superioridades ou inferioridades raciais. [...] O que é uma superioridade
nas regiões polares pode constituir uma inferioridade nos trópicos e
vice-versa.” P 74
“Os negros e os índios perdem
menos quantidade de sal pela sudação por conservarem a sua pele nua, não
recoberta pelo vestuário.” P 75
“Das carências vitamínicas as
mais generalizadas são as dos elementos componentes do complexo B. [...] Isto
explica que em vários continentes as áreas de mandioca seja áreas de beribéri –
doença causada pela carência de vitamina B1, também chamada tiamina: a área
amazônica, na América, e área da bacia do Congo, África.” P77
“A maior parte dos desbravadores
da borracha que ali chegavam, atraídos pelo rush do produto, foi derrubada pela
terrível doença [beribéri]. [...] Defumavam a borracha. E quando estavam se
sentindo donos do mundo, começavam a sentir o chão fugindo debaixo dos pés, a
sentir as pernas moles e bambas, a dormência subindo dos pés até à barriga.
[...] Era o beribéri chegando, tomando-lhes conta do corpo, roendo-lhes os
nervos, acabando com a vitalidade do aventureiro nordestino.”p 79
Consequências da supervalorização
da borracha: “Com a paralização da pesca e com os rebanhos abandonados,
afogando-se à míngua nas enchentes, com a agricultura parada por falta de
braços, enfim, com todas as fontes de riqueza local se desmoronando, a
alimentação regional sofreu tremenda crise.” P80
“A partir do momento em que se
acabou o monopólio da borracha, em que o produto da planta cultivada no Extremo
Oriente concorreu e sobrepujou a planta nativa do Vale Amazônico, com a crise
econômica que então surgiu, com os preços da borracha caindo assustadoramente,
os negociantes do produto abrindo falência, a economia da região em colapso, o
beribéri, como se fosse alimentado por esta própria economia, também começou a
declinar.” P81
“Assim se fechou o ciclo da
terrível doença, ciclo que tem suas analogias com o do escorbuto no Alasca
durante a febre do ouro.” P81
“O regime alimentar magro, quase
sem gorduras animais, sem leite, sem manteiga e com poucas folhas verdes é, sem
nenhuma dúvida, pouco abundante em vitamina A.” p82
“O que é comum nessa área
(Amazônia) é a hipovitaminose relativa, denunciada pela falta de crescimento,
pela visão até certo ponto deficiente e, principalmente, pelas perturbações
cutâneas; pelas manchas escuras da pele, pelo aumento de suas rugosidades que a
transformam num couro grosso e áspero com espículos em torno dos folículos
pilosos. São grupos humanos com a pele lembrando o couro do jacaré, seu
companheiro da fauna amazônica.” P82
“O consumo habitual dos molhos
apimentados, dos sucos de ervas fermentadas e misturadas com pimenta, como o
tucupi, o tacacá e o arubê, molhos que constituem o sal e o tempero comum do
peixe, da caça e dos bolos de mandioca da Amazônia, afasta estas populações dos
perigos das carências completas em vitamina C.” p83
Curaçau – Ilha da Curação. Página
84
“a verdade é que se as riquezas
da região amazônica não são tão fabulosas como suas lendas, nem o seu clima é
dos mais acolhedores do mundo, seria, no entanto, possível vencer estas dificuldades
e desenvolver o povoamento da região desde que sua colonização fosse realizada
dentro de um plano de aproveitamento racional e não de intempestiva destruição.
Destruição da riqueza vegetal com as seringueiras sangradas até a última gota
de seu látex, com os peixes e as tartarugas destruídos sem discernimento, quase
até o extermínio das espécies. Sem nenhuma preocupação de melhorar os processos
de agricultura primitiva nem de ampliar a sua área de cultivo.” P 87
“Assim se apresenta o caso da
conquista econômica da Amazônia: luta tenaz do homem contra a floresta e contra
a água. Contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada
abundância da água dos seus rios. Água e floresta que parecem ter feito um
pacto de natureza ecológica, para se apoderarem de todos os domínios da região.
O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou
todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive
o homem...” p88
“ ‘Numa região em que a natureza
se concentrou para resistir, o homem se dispersou para agredi-la’, diz Viana
Moog com muita penetração. De fato, o homem amazônico, longe de formar grupos,
tentou penetrar na floresta como indivíduo, isolado num heroísmo individual sem
precedente na história das colonizações. Numa louca aventura solitária, vivida
no silêncio da floresta.” P 89
“Com este tipo de colonização, de
tão acentuada marca medieval, formou-se a nossa estrutura social com esse
caráter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefação, de que nos fala Oliveira
Viana, esparramando-se o organismo social, ralo e superficial, por extensões
que não podiam ser alcançadas pelo organismo político, sem capacidade de
irradiação.” P90
“Já o general Kundt, que sonhava
com a colonização da Amazônia e sua transformação num celeiro para o mundo,
através de gigantesco plano de povoamento, salientava não se tratar de uma
região a ser confiada ao povoador individual mas à organização colonizadora
sistemática.” P91
Fordlândia e Beltarra pgs 91-2
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