“Aqueles leões não emergiram do mato. Eles nasceram do
último conflito armado. Repetia-se, agora, a mesma desarrumação de todas as
guerras: as pessoas tornaram-se animais e os animais tornaram-se gente. Durante
as batalhas, cadáveres foram deixados no campo, nas estradas. Os leões
comeram-nos. Naquele preciso momento, os bichos quebraram o tabu: começaram a
olhar as pessoas como presas. O cego, enfim, encerrou o longo discurso:
- Já não somos donos, nós os homens. Agora, eles mandam no
nosso medo.
Depois discorreu com eloquência e sem interrupção:
- Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me
lembrar dos soldados do exército português. Esses portugueses tanto foram
imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força
para nos vencer. Por isso, fizeram com que as suas vítimas se matassem a si
mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós mesmos.
O velho falava como se discursasse, pleno de certeza.
Naquele momento, ele era um soldado. Uma imaginária farda cingia-lhe a alma.”
Mia Couto, em "A confissão da leoa"
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