Há muitas análises que comparam a gripe espanhola à pandemia do novo coronavírus. Apesar das muitas semelhanças entre os vírus que dizimaram milhares de pessoas em todo o mundo, vale contextualizarmos a relação entre as epidemias e as novas formas de organização social que emergiram. Tal como no passado, vemos hoje parte da população orientada politicamente contra a ciência, contra as universidades, contra as autoridades sanitárias e, por incrível que pareça, até contra as vacinas. Então, devemos recordar o que foi uma medicina pré-moderna e sua superação.
Imaginemos
uma cidade em que os mercados são as próprias ruas, com alimentos e produtos
expostos pelas calçadas, dificultando o trânsito de pessoas. O mau cheiro por
onde passamos, com rios poluídos se confundindo com o odor de lixos e animais.
Bairros construídos de forma desordenada formando quase um labirinto de becos,
misérias e precariedade. Pois bem, não estamos falando do Rio de Janeiro, mas
de Londres ou Paris entre o fim da Idade Média e a consolidação de suas áreas
urbanas.
A
existência de pobreza, tal como a sujeira e os esgotos, passou a ser um
problema com as epidemias, em especial com a propagação da cólera no século XIX.
Daí o nascimento do medo em torno da articulação entre os riscos econômicos,
sanitários e políticos. Como demonstra Michel Foucault, em “Microfísica do Poder”,
nesse cenário caótico a medicina se desenvolve com as transformações das
estruturas urbanas, tanto para responder à necessidade de controlar os pobres
quanto para evitar as doenças e as epidemias. Era necessário disciplinar os
corpos nesses amontoados humanos, assim como contabilizar os óbitos, padronizar
a prática médica, organizar os cemitérios, cuidar e tratar os esgotos e as
águas. Enfim, emergem duas noções importantes: a salubridade e a higiene
pública.
Um
símbolo dessa mudança paradigmática é a diferença do tratamento entre a lepra e
a peste. Seguindo uma lógica pré-moderna, quando um leproso era descoberto ele
era expulso do convívio, colocado para fora dos muros da cidade. De outro lado,
para responder à peste, em vez de expulsar, utilizou-se o poder político da
medicina para segregar e distribuir os indivíduos, individualizá-los e
vigiá-los. Dessa forma, foi possível entender como a doença evoluía, realizar
um registro controlado de cada caso, inspecionar o território e as casas.
O
medo dos pobres, das revoltas e das epidemias fez surgir, na Inglaterra, os
sistemas de health service e health officers (1875). Procurava-se realizar o
controle de vacinação, organização e registro de epidemias e a localização/destruição
de lugares insalubres. Esse mesmo sistema que surge na Inglaterra no século XIX
foi a inspiração para a criação do SUS, no Brasil, em 1988. O sistema inglês
está entrando em seu terceiro século de existência, enquanto o SUS está
completando apenas três décadas. Para o enfrentamento da atual pandemia temos
como fator positivo, mesmo que em suas fases iniciais de estruturação, o maior
sistema público de saúde pública do mundo.
Há
uma semelhança com o sistema inglês em suas origens, que é o enfrentamento de
grupos de natureza política/religiosa e messiânica que defendem o direito das
pessoas de não passarem pela medicina oficial, o direito de se curar e morrer
como quiserem. Uma espécie de liberalismo, como se a responsabilidade pública
pudesse ser diluída em responsabilidades individuais, como se não houvesse uma
relação entre a miséria e a opulência. Por isso, uma das lutas mais importantes
que travamos hoje é a da memória, tanto daqueles que perdemos na pandemia,
quanto das conquistas civilizatórias.