"Numa 'passagem de uma enciclopédia imaginária chinesa', Jorge Luís Borges procura evocar o desvario que tal tentativa deve produzir. Diz que os animais estão divididos nas seguintes categorias: 'a) os pertencentes ao imperador, b) os embalsamados, c) os domesticados, d) os leitõezinhos, e) as sereias, f) os mitológicos, g) os cachorros vadios, h) os incluídos na presente classificação, i) os inumeráveis, k) os pintados com um finíssimo pincel de pelo de camelo, l) et cetera, m) os que recentemente quebraram o jugo, n) os que de longe parecem com moscas". Semelhante taxeonomia jamais terá vez a não ser que alguém a julgue apropriada para seus intentos [...] essa taxeonomia dos animais deve ter sentido, da mesma forma que a taxeonomia dos objetivos educacionais tem sentido para os autores científicos." 117
"Este trecho de Borges é fascinante, pois evoca a lógica da concordância irracional que tornou as burocracias de Kafka e Koestler tão sinistras mas tão representativas de nossos dias. 117-118
"triunfou na cultura americana um compromisso com a terapia, a tal ponto que os professores começaram a ser vistos como terapeutas cujos serviços eram necessários a todos... os professores-terapeutas vão mais longe e propõem como próximo passo um tratamento educacional que dure a vida toda." 118
"Uma revolução educacional depende de uma dupla inversão: nova orientação das pesquisas e nova compreensão do estilo educacional de uma cultura emergente." 120
"O ponto cego da pesquisa educacional reflete o preconceito cultural de uma sociedade em que o crescimento tecnológico foi confundido com controle tecnocrático. [...] A liberdade fica reduzida a uma escolha entre mercadorias empacotadas." 120
Ivan Illich, Sociedade Sem Escolas
Passo de Gigante
Faz de conta...
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
OS AFRO-BRASILEIROS
Por Darcy Ribeiro, em "O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil"
"Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. Arthur Ramos [...], prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues [...], distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba - chamados nagô -, pelos Dahomey - designados geralmente como gegê - e pelos Fanti-Ashanti - conhecidos como minas - além de muitos representantes de grupos menores de Gâmbia, Serra Leoa, Costa Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do Norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a 'Contra Costa', que corresponde ao atual território de Moçambique." p 102
"Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não intelegíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas. [...] A própria religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia." p102-103
"O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, conseguiam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de autorreconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil." p 106
"Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém - seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, viva a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado para arder como um graveto oleoso." p 107-8
"Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria." p 108
"A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, serviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária." p 108
- São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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segunda-feira, 24 de novembro de 2014
ENTRE PRÁTICAS E RECURSOS TERAPÊUTICOS
SYLVIE FAINZANG[1]. ENTRE PRÁTICAS E
RECURSOS TERAPÊUTICOS: As problemáticas de
um itinerário de pesquisa. Antropolítica: Revista Contemporânea de
Antropologia e Ciência Política. Número 15. Niterói, 2o semestre
2003.
-
“Assim sendo, pretendo mostrar, nesta exposição, como
diferentes pesquisas, dotadas de objetos, situações de campo e problemáticas
variadas, isto é, que se iniciam de forma distinta, podem ser perpassadas por
questões convergentes e até mesmo permanentes.” P20
-
“Meu interesse particular pelo estudo dos sistemas
simbólicos que estão no fundamentos das práticas sociais nasceu precisamente da
leitura deste livro de Marshall Sahlins (1980), [...] para todos [...] que se
interessam pelas dimensões culturais que organizam os comportamentos humanos.”
A gestão intelectual e prática da
doença em uma sociedade oeste-africana
-
“Iniciei minha pesquisa na África junto aos bisa, [...] (hoje burkina faso) [...] centrei minhas
pesquisas sobre as representações e as práticas relativas à doença [...] me
interroguei particularmente sobre os meios pelos quais a sociedade se encontra
dotada, em termos de gestão prática e intelectual da doença, para assegurar
controle sobre os indivíduos. [...] Um espaço importante foi reservado aos
estudos dos modelos explicativos da doença e dos acontecimentos em geral, aos
quais os processos de acusação que eles particularmente suscitam e as práticas
terapêuticas estavam estreitamente articulados.” P 20-1
-
“A percepção social do evento-doença, que fundamenta a
consulta adivinhatória, conduz o adivinho a relacionar os fatos e gestos dos
consultantes e experiências passadas ou à projeção do futuro e, assim, elaborar
relações causais entre fenômenos muitos diversos entre si.” Freqüentemente a
doença é concebida como sanção infligida por poderes sobrenaturais, devido à
infração às regras sociais, transgressão de tabus ou exprime a percepção de um
conflito entre indivíduos ou entre grupos. Woso, príncipe transcendente
ao universo. “Pensar a doença é tentar ordená-la sob encadeamento temporal e a
lógica de eventos múltiplos. É legitimar a obediência a comportamentos sociais
específicos, situados sob pontos diversos da seqüência causal, suscetíveis de
lhe modificar o curso. [...] a instituição adivinhatória assume um papel de
controle social.” P 21-2
-
“A diferença é que uns (os comportamentalistas) o
produzem, enquanto outros (os adivinhos) nada mais fazem do que interpretar os
eventos e designá-los enquanto tais. Assim, é a gestão intelectual do evento
que determina as práticas sociais.”
-
“se levarmos em consideração precisamente a incidência
do uso da categoria Woso sobre as práticas sociais, perceberemos, por um
lado, que certas representações da doença são totalmente afuncionais e, por
outro, que os indivíduos recorrem, às vezes, à categoria Woso para
escapar à análise advinhatória, exprimindo, assim, uma resistência ao controle
social.” P 22
A interpretação da doença em um
distrito da região parisiense
-
“Assim, no Ocidente, como na África, a interpretação que
os sujeitos fazem da doença e os motivos que permeiam os recursos terapêuticos
colocam em jogo os sistemas de pensamento e representações do real,
extrapolando enormemente o domínio estritamente médico. O antropólogo deve
então se dedicar a estudar e decodificar estes aspectos.” P 23
-
“procurei colocar em relevo, a partir do que o estudo
da antropologia da doença pode nos trazer sobre estas sociedades, quais são os
pontos comuns nos seus respectivos sistemas simbólicos. [...] E que, para além
das diversidades culturais, podemos identificar aspectos universais no que diz
respeito à relação com o mal, com a doença e com os infortúnios em geral. O
objetivo desta pesquisa era perceber como as representações da doença se
integram a outros sistemas simbólicos; revelar as lógicas que conduzem aos
recursos terapêuticos, em particular, estudar a articulação e a coerência entre
representações da doença e estratégias terapêuticas; e perceber como estas
últimas se articulam, por sua vez, com a especificidade cultural dos diferentes
grupos.” P 23-4
-
“Um dos grandes eixos da minha pesquisa consistiu,
portanto, em enumerar e trazer à tona os diferentes modelos explicativos da
doença. Para tanto, dei atenção particular aos processos de acusação
desencadeados pela sua aparição; e aos sistemas de pensamento que os fazem
surgir. Enfim, de maneira mais ampla, tentei entender suas condições de
existência.”
-
“Os resultados da pesquisa me permitiram constatar que
o discurso social sobre a doença pode ser visto como uma linguagem de tensões
sociais, fornecendo o meio de expressão da tensão entre os indivíduos e entre
os grupos. [...] Ele é revelador de conflitos interpessoais e sociais.
Conseqüentemente, dei-me conta de que, nas sociedades em que a bruxaria tem
relevância (seja na África ou na França), falar de doença é anunciar a relação
do doente com os outros [...] O discurso sobre a doença funciona, portanto,
como uma grade de leitura de relações sociais e se exprime segundo modalidades
específicas, de acordo com o pertencimento cultural dos sujeitos.” P 24-5
-
“O conjunto de estudos de casos realizados nos
diferentes meios culturais estudados me conduziu a reconhecer quatro modelos de
acusação: 1. a auto-acusação; 2. a acusação de um outro próximo (ou familiar);
3. a acusação de um outro distante (ou estranho); 4. a acusação da
‘sociedade’.”
-
“Assim, o estuda da causalidade nas sociedades de
linhagem revela a referência massiva ao modelo de auto-acusação e ao modelo de
acusação do Outro. Em contrapartida, não se encontram nos discursos produzidos
pelas sociedades de linhagem os modelos de acusação da sociedade, tais como
eles são formulados pelas sociedades ocidentais. [...] os discursos
interpretativos africanos revelam uma resistência à reprodução almejada pela
etiologia social, eles jamais colocam em questão os valores partilhados. Eles
tendem somente a promover estratégias pessoais, que não visam ser denunciadoras
da ordem social. Distinguem-se, assim, dois modelos de causalidade: uma
causalidade subversiva e uma reprodutiva.”
-
“Mas ela [minha perspectiva] procurou igualmente se
distinguir daquela elaborada por antropólogos, para os quais não existe
diferença entre experiência científica e experiência mágica. Meu propósito foi,
ao contrário, mostrar a profunda analogia entre os modos de pensamento
tradicionais africanos e os modelos teóricos da sociedade ocidental.” P 25-6
-
“A observação revela que a interpretação que os
sujeitos têm da doença possui uma incidência sobre os recursos terapêuticos,
assim como sobre os seus comportamentos quotidianos.”
-
“Como o discurso sobre a doença corresponde a uma
grande leitura das relações, que o sujeito estabelece com os seus próximos ou
com outros grupos sociais, a significação adotada não pode ser imediatamente
abandonada. Ignorá-la é abandonar a acusação pela qual as relações se
estabelecem. É negar a validade do olhar que o sujeito incorpora sobre a sua
inscrição social. (FAINZANG, 1988, 2000).”
-
“Em cada um destes casos, a conduta terapêutica do
doente é função da lógica interpretativa à qual ele adere. A propensão do
doente a dar um sentido à sua doença e a lhe atribuir uma causa leva-o a
procurar a medicina que lhe oferecerá – pelo diagnóstico que ela elabora – o
máximo de coerência com sua própria percepção da doença. Em decorrência, a
prescrição que possa ser considerada como a mais adequada para responder
eficazmente ao seu caso particular.”p 27
Sexualidade e reprodução no meio
africano imigrante
-
“o Ministério dos Direitos da Mulher me solicitou a
realização de uma pesquisa sobre as mutilações sexuais no meio africano
imigrante. Assim, entrei em contato com mulheres originárias do Mali e do
Senegal com o objetivo de discutir com elas as práticas relativas à
clitoridectomia, [...] estas mutilações revelavam o desejo de inscrever as
relações sociais sobre os corpos.”
-
“Os materiais coletados revelam, de fato, o que o
‘trabalho’ realizado sobre os corpos não visa somente confirmar a diferença
biológica entre os sexos, mas também corrigir o sexo biológico de maneira a
tornar possível, para a pessoa socializada como feminina ou masculina, o
estatuto que lhe é atribuído. E, nessa medida, reduzir ou suprimir o que, na
mulher, é concebido como equivalente do sexo masculino, criando então condições
(fisiológicas) de dominação (social) do homem sobre a mulher.” Relação entre
excisão e circuncisão. P 28
Representações e gestão do
alcoolismo em um movimento de antigos bebedores
-
“Assim que terminei minhas pesquisas sobre a
interpretação da doença em Ville-du-Bois, fui levada a dar um certo
direcionamento ao objeto de estudo, passando da doença em geral para a ‘doença
alcoólica’ em particular, e, mais precisamente, a um movimento de antigos
bebedores: Vie Libre.” P 29
-
“Assim, segui a questão da interpretação da doença,
estudando os modelos explicativos do alcoolismo, conforme são elaborados no
seio do movimento dos antigos bebedores Vie Libre. Enquanto para a maioria dos
etnólogos tomar o alcoolismo como objeto é levar em consideração o alcoolismo
como um modo de vida, ou o traço de uma cultura, eu, ao contrário, tratei de
restituir o ponto de vista êmico de uma associação de antigos bebedores,
retendo a equivalência ‘alcoolismo-doença’.” P 30
-
“Conduzi, desta forma, uma reflexão sobre a teoria da
causalidade elaborada a propósito do alcoolismo por este movimento. Todavia, os
discursos explicativos do alcoolismo não se reduzem ao discurso doutrinal.
[...] A questão da relação que o indivíduo mantém com a doença se integra
inevitavelmente à problemática da relação frente ao Outro. [...] Desse modo,
também procurei compreender o que representa e simboliza o álcool nesta
perspectiva. Trata-se de saber se a eficácia de adesão do sujeito a este tipo
de associação é tributária da adoção de certos esquemas de causalidade e,
eventualmente, de uma reconversão no plano da percepção das causas do
alcoolismo e da imputação de responsabilidades, questão que se relaciona com a
dos sistemas interpretativos da doença. [...] Assim, a pesquisa permitiu
observar a imbricação de vários tipos de discursos, cuja coexistência se torna
possível pela sua adaptação tanto ao discurso doutrinal do movimento Vie Libre,
quanto à responsabilidade que ele atribui ao álcool, enquanto encarnação
metonímica da sociedade.” P 30-1
-
“O estudo do sistema simbólico articulando as
representações dos efeitos do álcool sobre o corpo do alcoolista (em
particular, sobre importantes órgãos como o cérebro, bem como nervos e sangue)
e o papel destas desordens fisiológicas sobre a formação de seu comportamento
social permitiram compreender, por exemplo, as razões das reticências
manifestadas pelos homens alcoolistas com o tratamento psiquiátrico.”
-
“Vie Libre gerencia, de uma maneira específica, a
identidade do doente.” P 32
-
“Por outro lado, o trabalho de campo me permitiu
constatar que, no Vie Libre, cônjuges dos doentes, mesmo que não bebedores,
tendem a se considerar doentes tanto quanto os próprios alcoolistas, atribuindo
sua doença ao contágio. [...] Este dado me conduziu à investigação sobre o
conteúdo da idéia de contágio. As representações do alcoolismo como doença
‘contagiosa’ [...] enraizadas na noção de doença coletiva desenvolvida pelo
movimento, não são resultantes de um desconhecimento das modalidades de
emergência desta ‘doença’, mas da tradução de uma concepção de alcoolismo que
lhe atribui a capacidade de afetar fisiologicamente os indivíduos que se
encontram em uma relação social estreita com o doente.”
-
“Minha tarefa era, portanto, compreender o sentido de
condutas aparentemente incoerentes (como, por exemplo, o fato de um doente
recorrer a uma instância terapêutica que ele julgue menos eficaz) e saber o que
está em jogo na determinação destes recursos. [...] O estudo das situações em
que esta defasagem pudesse ser observada evidenciou os motivos ou os
empreendimentos capazes de explicá-la, mediante a proposta da noção de
‘estratégias paradoxais’. Por esta noção, designei tanto as condutas adotadas
com fins terapêuticos, mas geradoras de condições patológicas capazes de
reforçar o mal contra o qual o sujeito procura lutar [...] Trata-se de
estratégias adotadas, de maneira explícita, para resolver um problema de saúde,
e, de maneira implícita, para responder a outras necessidades, dando lugar a
uma outra lógica.” P 32-3
-
“Hoje, todavia, parece-me necessário distinguir: de uma
parte, as condutas elaboradas com fins terapêuticos, mas cujos efeitos são
contrários; e, de outra parte, as condutas que são elaboradas com outros fins
não terapêuticos, porque elas são supradeterminadas por outras questões (mas
seguidamente de ordem relacional).”
As atitudes culturais em face da
receita e dos medicamentos
-
“[...] decidi estudar as condições de uso da receita
médica [...]” p 34
-
“fixei-me sobre as relações entre representações e
práticas sociais relativas à doença, desejei compreender a relação entre o
pertencimento cultural e as estratégias terapêuticas, limitando o pertencimento
cultural à origem religiosa, e as estratégias terapêuticas às condutas quanto
às prescrições médicas.”
-
“O conjunto dos resultados obtidos revela a relação que
estes pacientes, e diferentes grupos culturais, mantêm com a autoridade médica,
comparável com a atitude dos pacientes praticantes diante da autoridade
religiosa. Além do nível sociocultural dos indivíduos, observamos, por exemplo,
mais por parte dos pacientes de origem católica e muçulmana do que por parte
dos pacientes de origem judia e protestante, uma submissão mais forte em
relação ao médico.” P 35
A mentira na relação
médico-paciente
-
“Portanto, decidi investigar particularmente a prática
da mentira e estudá-la como uma prática social como tantas outras, para
analisar os resultados e suas significações de um ponto de vista antropológico.
Esta prática ainda me interessava pelo fato de que ela correspondia ao que eu considerava como ‘condutas paradoxais’.
[...] A mentira se apresenta como um paradigma da conduta paradoxal, pois ela
consiste em esconder a realidade e, conseqüentemente, em impedir o médico de
exercer plenamente seu papel.” P 36
-
“No entanto, a mentira não é uma conduta apenas dos
pacientes, ela é também praticada pelos médicos. [...] por mais racional que
ela possa ser (por razões sociológicas e/ou terapêuticas, a mentira do médico é
comumente objeto de uma racionalização, uma vez que é pelo ‘bem’ do paciente
que o médico mente) [...] Enfim, a mentira apresenta-se como um produto da
relação médico-paciente e escapa à explicação pela razão terapêutica, uma vez
que ela é subentendida pelas lógicas culturais e sociais.” P 36-7
[1]
Pesquisadora do INSERM – Institut National de la Santé et Recherche Médicale e
do CERMES – Centre de Recherche Médécine, Sciences, Santé et Societé.
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domingo, 23 de novembro de 2014
1 kg de sal
Conhece alguém,
quando só ontem
O já trilhado é
caminho e destino
Ou mito não dito no
passado,
Omitido no whisky ou
no vinho
- um misto de risco
Nada mais, que um
quilo de sal
– além, são sais,
os sentidos,
segredos e
abrigos.
Rodolfo Lobato (novembro/2014)
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Geografia da Fome - Introdução e a Área Amazônica
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1957.
“Le mensonge héroique est une lâcheté. Il n’y a qu’un
héroisme au monde: c’est de voir le monde tel qu’il est, et de l’aimer.” Romain
Roland
PREFÁCIO DO AUTOR
“se fizermos um estudo
comparativo da fome com as grandes calamidades que costumam assolar o mundo – a
guerra e as pestes ou epidemias, - verificaremos, mais uma vez, que a menos
debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome.” P 20
“Quais são os fatores ocultos
desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? [...] Trata-se de um
silêncio premeditado pela própria alma de nossa cultura: foram os interesses e
preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada
civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco
aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a
esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a
fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um
tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por
todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta
humana.” P 20
“A demonstração muito efetiva da
mudança radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na
realização da Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das
conferências convocadas pelas Nações Unidas para tratar de problemas
fundamentais à reconstrução do mundo de após-guerra. Nesta conferência reunida
em 1943, e que deu origem à atual Organização de Alimentação e Agricultura das
Nações Unidas – a F.A.O. – quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de
eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as
condições reais de alimentação dos seus respectivos povos....” p 23
“Foi diante desta situação que
resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva [...] Para tal fim
pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome.” P
24
“Neste ensaio de natureza
ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes
grupos humanos, ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um
lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu
tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro
lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura
econômico-social dos diferentes grupos estudados.” P 25
“Não é esse tipo de fome
[individual], simples traço melodramático no emaranhado desenho da fome
universal, que interessa ao nosso estudo. O nosso objetivo é analisar o
fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as
grandes massas humanas.” P 26
Starvation – fome em inglês
associada a áreas de miséria
“... fome parcial, da chamada
fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos
nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam
morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.” P 27
“Buscando essa valorização dos
fatores de categoria biológica, não quer dizer que desprezemos a importância
dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria do latifundismo
agrário-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira.
Isto é inegável.” P29
“Não foram razões de ordem
sentimental, nem de supervalorização patriótica que nos ditaram essa conduta:
foram razões de ordem didática. O Brasil constitui o nosso campo de observação
e de experimentação diretas do problema. [...] O seu vasto território, com
diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial superúmido da
Amazônia até o tropical seco e semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical
com seus variados tipos de organização econômica, apresenta condições
excepcionais para uma larga investigação do problema da alimentação nos
trópicos. Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para
funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social deste problema.” P
32
Prefácio assinado em 1956, Rio de
Janeiro.
INTRODUÇÃO
“Quando se lê ou se ouve falar em
fomes coletivas, em angustiadas massas humanas atacadas e morrendo à falta de
um pouco de comida, as primeiras imagens que assaltam a nossa consciência são
as imagens típicas do Extremo Oriente. [...] Massas pululantes de esquálitos
coolies chineses.” P 39
“Imagens dos campos de
concentração e das cidades e dos campos europeus devastados pela tirania nazi
durante a última guerra mundial.” P39
“... para aqueles que têm
conhecimento da fome apenas através dos jornais, reduzem-se a estas duas
grandes regiões – o Oriente exótico e a Europa devastada – as áreas de
distribuição da fome...” p39-40
“Na realidade, a fome coletiva é
[...] um fenômeno geograficamente universal [...] se os estragos desse flagelo
na América não são tão dramáticos [...] esses estragos se fazem sentir mais
sorrateiramente, minando a nossa riqueza humana numa persistente ação
destruidora, geração após geração.” P 40
“Os inquéritos sociais e os levantamentos
estatísticos levados a efeito em diferentes zonas do continente vieram mostrar
que por toda parte as populações americanas continuam expostas às consequências
funestas da subnutrição e da fome.” P 40
“Carências protéicas, carências
minerais, carências vitamínicas.” P 41
“Milhões de seres humanos o têm
vivido durante séculos silenciosamente, com uma resignação que aproxima, sob
este aspecto, os povos americanos dos povos do Oriente.” P 42
“Numas regiões [ do Brasil], os
erros e defeitos são mais graves e vive-se num estado de fome crônica; noutras,
são mais discretos e tem-se a subnutrição.” P 42
“O país abrange pelo menos cinco
diferentes áreas alimentares, cada uma delas dispondo de recursos típicos, com
sua dieta habitual apoiada em determinados produtos regionais e com seus
efetivos humanos refletindo, em muitas de suas características, tanto somáticas
como psíquicas, tanto biológicas como culturais, a influência marcante dos seus
tipos de dieta. Cinco áreas bem caracterizadas e assim distribuídas: 1) Área da
Amazônia; 2) Área da Mata do Nordeste; 3) Área do Sertão do Nordeste; 4) Área
do Centro-Oeste; 5) Área do Extremo Sul...” p 43
“Para que uma determinada região
possa ser considerada área de fome, dentro do nosso conceito geográfico, é
necessário que as deficiências alimentares que aí se manifestam incidam sobre a
maioria dos indivíduos que compõem seu efetivo demográfico.” P 44
II
ÁREA AMAZÔNICA
“A região da Amazônia representa,
sob o ponto de vista ecológico, um tipo unitário de área alimentar muito bem
caracterizado, tendo como alimento básico a farinha de mandioca.” P 45
“Região com uma população de tipo
homeopático, formada de gotas de gente salpicadas a esmo na imensidade da
floresta, numa proporção que atinge em certas zonas à concentração ridícula de
um habitante para cada 4 km quadrados de superfície. [...] Sem forças
suficientes para dominar o meio ambiente, para utilizar as possibilidades da
terra, organizando um sistema de economia produtiva, as populações regionais
têm vivido até hoje, no Amazonas, quase que exclusivamente num regime de
economia destrutiva. Da simples coleta dos produtos nativos, da caça e da
pesca. Da colheita de sementes silvestres, de frutos, de raízes e de casca de
árvores. Do látex, dos óleos e das resinas vegetais.” P 46-7
“Apenas em zonas limitadas e
utilizando processos rudimentares se estabeleceu uma cultura primitiva de
certos produtos de alimentação, como as da mandioca, do milho, do arroz e do
feijão.” P 47
Chibé
Beijus
“A terra é quase que inteiramente
açambarcada pelas plantas, restringindo-se a vida animal sobre o solo às
formigas e outros insetos, às cobras e aos macacos e a variedades de espécies
de pássaros. São, pois, limitadas as possibilidades de caça para abastecimento
alimentar. A pesca rende muito mais e contribui para a dieta local com
elementos mais ricos e variados. Sejam peixes de água doce [...] sejam
crustáceos ou moluscos, camarões, siris, avius, caranguejos e ostras. Do que
também fazem abundante uso os nativos para sua alimentação é das tartarugas,
das quais consomem tanto a carne como os ovos.” P 50
“A floresta é um obstáculo à
criação de gado.” P 51
“Apenas recentemente, através do
Instituto Agronômico do Norte foi introduzido em Marajó o búfalo africano,
animal rústico e de relativas possibilidades de adaptação econômica ao meio
hostil a raças selecionadas e de alta produção, seja de carne, seja de leite.
Ainda assim, e contrariando o esforço de racionalização da pecuária, essa
rusticidade do búfalo está sendo explorada no sentido de não lhe ser prestada
qualquer espécie de assistência zootécnica, e as adaptações a que o meio lhe
obriga, nem sempre são favoráveis aos interesses econômicas e aos fins
sociais.” P 52
“Estas limitações que a natureza
impõe à pecuária, a falta de transporte entre zonas de criação e o resto da
região amazônica, não facilitam o seu abastecimento nem de carne nem de leite.
[...] Carne, só seca e salgada.” P 53
“Se a inundação destrói muitas
vezes o duro trabalho agrícola também traz dissolvida nas águas das cheias o
sedimento rico em elementos minerais e orgânicos que ficarão depositados sobre
o solo quando as águas baixarem.” P 53-4
“As populações do Amazonas sempre
classificaram os rios da região em dois grupos: os rios negros e os rios
brancos. Os negros tendo as águas translúcidas, carregadas apenas dos reflexos
profundos das sombras escuras da floresta, e os brancos com as suas águas
turvas, barrentas, ricas de materiais de aluvião. São as águas dos rios brancos
as que fertilizam o solo equatorial do Amazonas. [...] A verdade é que o
excesso de chuvas lavando permanentemente este solo, aliados a outros fatores
de intemperismo regional, o empobrece de maneira alarmante, e a agricultura sem
a adubação das enchentes esgota as suas reservas numa rapidez assustadora. Esta
é uma das razões que sempre obrigaram as populações indígenas a viver nesta
região num regime seminômade, derrubando a floresta num ponto, semeando um
pouco de milho, de arroz e de mandioca, colhendo a seguir o produto e
abandonando a roça para abrir outra clareira mais adiante. É que o rendimento
de uma segunda plantação já não compensaria o trabalho nem permitiria o
abastecimento suficiente do grupo, expondo-o aos perigos da fome aguda.” P
54-55
“É preciso não esquecer que na
elaboração destas comidas entram certos molhos preparados com sucos de ervas
locais e de pimentas [...] Os indígenas sempre foram grandes comedores de
pimenta [...] O consumo de verduras e de legumes verdes foi muito baixo nesta
região. O complicado cultivo da horta está muito acima da técnica agrícola
local [...] As frutas também, com exceção do açaí, entram em muita pouca
quantidade no regime alimentar habitual.” P 55
Buriti
Castanha do Pará
“A análise biológica e química da
dieta amazônica revela um regime alimentar com inúmeras deficiências nutritivas
[...] É uma alimentação parca, escassa, de uma sobriedade impressionante.” P 57
“Para bem compreendermos quais os
principais defeitos deste tipo de alimentação da Amazônia, precisamos analisa-la
de acordo com os modernos conhecimentos de nutrição e de acordo principalmente
com as variantes fisiológicas que o clima impõe ao metabolismo nas condições de
vida tropical. Variantes que dão ao metabolismo do homem dos trópicos um ritmo
especial e alteram inteiramente os limites quantitativos de suas necessidades
nos diferentes princípios alimentares.” P 58
“O clima amazônico de tipo
superúmido, com uma umidade relativa do ar que anda quase sempre pela casa dos
90%, alcançando a todo momento o ponto de saturação do ar em umidade,
condiciona forçosamente ao organismo humano uma sensível baixa do seu
metabolismo. Quem conhece o mecanismo da formação e da perda de calor nos seres
vivos compreende logo que esta diminuição do organismo em suas combustões
internas representa um processo de adaptação funcional, um processo prático de
evitar a sua destruição por superaquecimento, diante das dificuldades que o
meio ambiente opõe às perdas do calor animal. No excesso de temperatura e de
umidade reinantes, o organismo não dispõe de outros meios para se desfazer do
seu calor interno senão o de diminuir a sua formação, isto é, baixar o seu
metabolismo.” P60
“Na insuficiência alimentar
quantitativa e na forçada adaptação orgânica a esta situação permanente,
residem as explicações da apregoada preguiça dos povos equatoriais. A preguiça
no caso é providencial: é um meio de defesa de que a espécie dispõe para
sobreviver, e funciona como o sinal de alarma numa caldeira que diminui a
intensidade de suas combustões ou para mesmo automaticamente, quando lhe falta
o combustível.” P 61
“O déficit proteico resulta da
quase que ausência de alimentação absoluta, no regime alimentar desta gente,
das fontes de proteínas animais: carne, leite, queijo e ovos. [...] Já vimos
que destas fontes de proteínas completas as populações locais apenas dispõem da
carne de peixe, e isto mesmo de maneira irregular e em quantidade insuficiente.
[...] Seria necessário, não só pescar em quantidade bem maior do que se faz
atualmente, como industrializar o produto da pesca sob a forma de peixe seco,
salgado ou desidratado... “ p 61-2
“Quase que só dispondo de fontes
de proteínas vegetais, o regime local é deficiente em certos ácidos aminados.
Deficiência que se revela de logo pelo crescimento insuficiente, pela estatura
abaixo do normal...” p 62
“O que salva o amazonense é que
ele não come farinha pura como o mexicano se alimenta, dias e dias,
exclusivamente de milho. Um pouco de feijão, de arroz ou de batata e vez por
outra o seu peixe, ou seu tracajá ou jabuti, sempre o homem da Amazônia obtém
para variar o seu regime, diminuindo desta forma a deficiência proteica da
farinha.” P 63
“Ao lado das deficiências
proteicas ocorrem certas deficiências em sais minerais bem graves para as
populações amazônicas. O primeiro fator dessas carências minerais é a pobreza
do solo regional [...] As chuvas contínuas [...] agindo paralelamente à
temperatura elevada, estimulam a ação de microrganismos do solo, decompondo com
extrema velocidade a matéria orgânica e o húmus ali existentes...” p 64
“Quando a este fator – a pobreza
mineral dos alimentos – se juntam erros de dietética, como é o caso da região
amazônica, aumentam as probabilidades de incidência das carências minerais no
homem. Destas carências, as mais acentuadas nesta zona são as de cálcio, ferro
e cloreto de sódio.” P 66
“O solo é pobre em cálcio. As
águas e os alimentos ali produzidos são também pobres em cálcio.” P 67
“O que é de admirar, à primeira
vista, é que com tal exiguidade de cálcio em sua alimentação, não sofram de
raquitismo endêmico os habitantes desta área, com crianças de pernas tortas e
de ‘tórax de pombo’, de cabeças deformadas com seus ossos amolecidos à falta de
cálcio que lhes dê consistência. Nada disse existe na região do Amazonas. [...]
A explicação do fato encontra-se na extraordinária riqueza de insolação
regional que é fonte de vitamina D em cuja presença se torna difícil o
aparecimento do raquitismo.” P 67
“Se não há o raquitismo
exteriorizando a carência em cálcio, há, no entanto, uma grande incidência de
cáries dentárias...” p 68
“Por conta do déficit em ferro
apresenta-se na região um tipo característico de anemia, que durante muito
tempo foi atribuído à ação direta do clima. [...] Hoje se sabe que essa anemia
é apenas uma consequência da fome específica em ferro necessário para
fabricação dos glóbulos vermelhos. Os trópicos não exigem mais ferro nem
destroem maior número de glóbulos [...] A alimentação nas várias áreas
tropicais é que não subscreve, em geral, uma taxa adequada às necessidades normais
do organismo...” p68-9
“o fenômeno da geofagia ou
geomania, do hábito ou mania de comer terra. Hábito que a nosso ver traduz
quase sempre um tipo de fome específica, ...” p 69
“A anemia tropical não é,
portanto, uma fatalidade climática; não é um produto direto do clima agindo
sobre o organismo humano num determinismo inexorável.” P 69
“O déficit em cloreto de sódio é
bastante acentuado e resulta tanto de fatores naturais como culturais. [...]
Clima equatorial que, acarretando uma transpiração excessiva, espolia o
organismo em estremo das suas reservas de cloreto de sódio. [...] Para
compensar tamanha perda de cloreto de sódio seria necessário ingerir alimentos
excessivamente salgados ou contendo em sua composição química altas doses deste
princípio nutritivo. [...] A alimentação amazônica, na qual ainda hoje
predominam intensamente os hábitos e tradições indígenas, é uma alimentação com
pouco ou nenhum sal. O tempero que o índio sempre admirou foi a pimenta.” P
70-1
“os patologistas europeus tinham
notado que, em casos de uma doença que provoca uma fadiga aniquilante – a
insuficiência supra-renal – sempre se apresenta um desequilíbrio
sódio-potássico neste mesmo sentido. É por isto que nós afirmamos ocorrer nos
trópicos uma espécie de insuficiência supra-renal climática, pelo menos em sua
síndrome humoral, que só pode ser combatida com uma alimentação muito rica em
sal. Vemos assim que, se nos casos do déficit em ferro a ação do clima é
remota, fazendo-se sentir indiretamente, no caso do sódio é imediata, é direta.
Estes dois exemplos mostram como é complexo o fenômeno da aclimação. Como é
ingênuo afirmar-se ou negar-se em bloco, sem maiores discriminações, a ação dos
climas sobre o homem, em obediência a escolas sociológicas, limitadas a pontos
de vista unilaterais.” P 73
“Qual a razão pela qual o branco
se fadiga mais depressa do que o negro ou o índio? Pode haver várias
explicativas, mas o que não resta dúvida é que um dos fatores desta diferença
fundamental reside no fato de que o índio e, principalmente, o negro perdem
muito menor quantidade de cloreto de sódio através da sudação do que o branco.
[...] Trata-se realmente de uma superioridade biológica? Não. Primeiro, que não
existem superioridades ou inferioridades raciais. [...] O que é uma superioridade
nas regiões polares pode constituir uma inferioridade nos trópicos e
vice-versa.” P 74
“Os negros e os índios perdem
menos quantidade de sal pela sudação por conservarem a sua pele nua, não
recoberta pelo vestuário.” P 75
“Das carências vitamínicas as
mais generalizadas são as dos elementos componentes do complexo B. [...] Isto
explica que em vários continentes as áreas de mandioca seja áreas de beribéri –
doença causada pela carência de vitamina B1, também chamada tiamina: a área
amazônica, na América, e área da bacia do Congo, África.” P77
“A maior parte dos desbravadores
da borracha que ali chegavam, atraídos pelo rush do produto, foi derrubada pela
terrível doença [beribéri]. [...] Defumavam a borracha. E quando estavam se
sentindo donos do mundo, começavam a sentir o chão fugindo debaixo dos pés, a
sentir as pernas moles e bambas, a dormência subindo dos pés até à barriga.
[...] Era o beribéri chegando, tomando-lhes conta do corpo, roendo-lhes os
nervos, acabando com a vitalidade do aventureiro nordestino.”p 79
Consequências da supervalorização
da borracha: “Com a paralização da pesca e com os rebanhos abandonados,
afogando-se à míngua nas enchentes, com a agricultura parada por falta de
braços, enfim, com todas as fontes de riqueza local se desmoronando, a
alimentação regional sofreu tremenda crise.” P80
“A partir do momento em que se
acabou o monopólio da borracha, em que o produto da planta cultivada no Extremo
Oriente concorreu e sobrepujou a planta nativa do Vale Amazônico, com a crise
econômica que então surgiu, com os preços da borracha caindo assustadoramente,
os negociantes do produto abrindo falência, a economia da região em colapso, o
beribéri, como se fosse alimentado por esta própria economia, também começou a
declinar.” P81
“Assim se fechou o ciclo da
terrível doença, ciclo que tem suas analogias com o do escorbuto no Alasca
durante a febre do ouro.” P81
“O regime alimentar magro, quase
sem gorduras animais, sem leite, sem manteiga e com poucas folhas verdes é, sem
nenhuma dúvida, pouco abundante em vitamina A.” p82
“O que é comum nessa área
(Amazônia) é a hipovitaminose relativa, denunciada pela falta de crescimento,
pela visão até certo ponto deficiente e, principalmente, pelas perturbações
cutâneas; pelas manchas escuras da pele, pelo aumento de suas rugosidades que a
transformam num couro grosso e áspero com espículos em torno dos folículos
pilosos. São grupos humanos com a pele lembrando o couro do jacaré, seu
companheiro da fauna amazônica.” P82
“O consumo habitual dos molhos
apimentados, dos sucos de ervas fermentadas e misturadas com pimenta, como o
tucupi, o tacacá e o arubê, molhos que constituem o sal e o tempero comum do
peixe, da caça e dos bolos de mandioca da Amazônia, afasta estas populações dos
perigos das carências completas em vitamina C.” p83
Curaçau – Ilha da Curação. Página
84
“a verdade é que se as riquezas
da região amazônica não são tão fabulosas como suas lendas, nem o seu clima é
dos mais acolhedores do mundo, seria, no entanto, possível vencer estas dificuldades
e desenvolver o povoamento da região desde que sua colonização fosse realizada
dentro de um plano de aproveitamento racional e não de intempestiva destruição.
Destruição da riqueza vegetal com as seringueiras sangradas até a última gota
de seu látex, com os peixes e as tartarugas destruídos sem discernimento, quase
até o extermínio das espécies. Sem nenhuma preocupação de melhorar os processos
de agricultura primitiva nem de ampliar a sua área de cultivo.” P 87
“Assim se apresenta o caso da
conquista econômica da Amazônia: luta tenaz do homem contra a floresta e contra
a água. Contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada
abundância da água dos seus rios. Água e floresta que parecem ter feito um
pacto de natureza ecológica, para se apoderarem de todos os domínios da região.
O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou
todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive
o homem...” p88
“ ‘Numa região em que a natureza
se concentrou para resistir, o homem se dispersou para agredi-la’, diz Viana
Moog com muita penetração. De fato, o homem amazônico, longe de formar grupos,
tentou penetrar na floresta como indivíduo, isolado num heroísmo individual sem
precedente na história das colonizações. Numa louca aventura solitária, vivida
no silêncio da floresta.” P 89
“Com este tipo de colonização, de
tão acentuada marca medieval, formou-se a nossa estrutura social com esse
caráter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefação, de que nos fala Oliveira
Viana, esparramando-se o organismo social, ralo e superficial, por extensões
que não podiam ser alcançadas pelo organismo político, sem capacidade de
irradiação.” P90
“Já o general Kundt, que sonhava
com a colonização da Amazônia e sua transformação num celeiro para o mundo,
através de gigantesco plano de povoamento, salientava não se tratar de uma
região a ser confiada ao povoador individual mas à organização colonizadora
sistemática.” P91
Fordlândia e Beltarra pgs 91-2
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