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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Realidade

"É preciso ser um realista para
descobrir a realidade
é preciso ser um romântico
para criá-la"

Fernando Pessoa

domingo, 7 de setembro de 2014

POPULAÇÃO, ALIMENTO E LIBERDADE






Capítulo 9 do livro "Desenvolvimento como liberdade"
Amartya Sen

“As fomes coletivas assolam muitos países com espantosa inclemência [...] Além disso, a fome endêmica em massa é um flagelo que perdura em muitas partes do mundo...” p 236

“Tentamos mostrar o erro de julgar a natureza e a gravidade dos problemas de forma crônica, subnutrição e fome coletiva apenas da perspectiva da produção de alimentos. Contudo, a produção de gêneros alimentícios tem de ser uma das variáveis que podem, inter alia, influenciar a prevalência da fome.” P 236

EXISTE UMA CRISE MUNDIAL DE ALIMENTOS?

Citação de Malthus e a relação entre a produção de alimentos e o crescimento da população em “Ensaio sobre a população”, 1798.

A partir de dados atualizados da produção de alimentos, publicados pela FAO, Amartya Sen mostra que “não só inexiste um declínio real na produção de alimentos per capita (muito pelo contrário), como também os maiores aumentos per capita ocorreram nas áreas mais densamente povoadas do Terceiro Mundo...” p 238

“os problemas da África subsaariana são principalmente reflexo de uma crise econômica geral [...] e não especificamente uma ‘crise de produção de aliementos’. A história da produção de alimentos insere-se em um problema maior que deve ser enfrentado mais amplamente.” P 239

INCENTIVOS ECONÔMICOS E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS

Amartya Sen mostra como a produção de alimentos aumentou mesmo com a quedo do valor dos alimentos até o final da década de 90.
“Os preços dos alimentos obviamente flutuam no curto prazo, e em consequência do aumento ocorrido em meados da década de 1990 houve frequentes declarações alarmistas.” P 239

“É importante ver a produção de alimentos como resultado da atuação humana e compreender os incentivos que influenciam as decisões e ações dos indivíduos. Assim como outras atividades econômicas, a produção comercial de alimentos sobre as oscilações dos mercados e preços. Nesta época, a produção mundial de gêneros alimentícios tem sido tolhida pela escassez da demanda e pelos preços declinantes; isso, por sua vez, reflete a pobreza de algumas pessoas mais necessitadas.” P 240

ALÉM DA TENDÊNCIA DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS PER CAPITA

“Mas tudo isso não elimina a necessidade de desacelerar o crescimento da população. Pois, o desafio ambiental não está apenas na produção de alimentos – há outras questões relacionadas ao crescimento populacional e à superpopulação. [...] Na verdade, pode ser imensamente contraproducente a tendência a concentrar-se apenas na produção de alimentos, desconsiderando o intitulamento aos alimentos.” P 241-2

“Por exemplo, na fome coletiva de Bengala em 1943, os administradores impressionaram-se tanto pelo fato de não haver um declínio significativo na produção de alimentos (no que estava corretos) que não foram capazes de prever – e, por alguns meses, chegaram mesmo a recusar-se a reconhecer – a fome quando ela assolou Bengala com um inclemência catastrófica. Assim como o ‘pessimismo malthusiano’ pode ser enganoso para a previsão da situação mundial relativa aos alimentos, o que se poderia chamar de ‘otimismo malthusiano’ tem o poder de matar milhões quando os administradores caem na armadilha da perspectiva equivocada da produção de alimentos per capita e ignoram os primeiros sinais de desastre e fome coletiva. Uma teoria incorreta pode matar, e a perspectiva malthusiana da razão entre alimentos e população já fez inúmeras vítimas.” P 242

CRESCIMENTO POPULACIONAL E A DEFESA DA COERÇÃO

“Embora os temores malthusianos sobre a produção de alimentos no longo prazo sejam infundados [... ] A população mundial levou milhões de anos para atingir o primeiro bilhão, depois precisou de 123 anos para chegar ao segundo, 33 para o terceiro, 14 para o quarto e 13 para o quinto bilhão, com a promessa do sexto bilhão no decorrer de mais onze anos...” p 242

“Esse é um assunto muito controverso, mas existe uma escola de pensamento de grande expressão que defende, ao menos implicitamente, uma solução coerciva para o problema. [...] O problema da coerção suscita três questões distintas: 1) A coerção é, de algum modo, aceitável nesse campo?; 2) Na ausência de coerção, o crescimento populacional será inaceitavelmente rápido?; 3) A coerção tende a ser eficaz e atuar sem efeitos colaterais danosos?” p 243

COERÇÃO E DIREITOS DE REPRODUÇÃO

“A oposição à coerção pode provir tanto daqueles que preferem dar prioridade à família para decidir quantos filhos terá [...] como daqueles que afirmam ser essa uma questão na qual é a mãe quem deve ter a palavra final. [...] direitos ao aborto...” p 243

“Muitos filósofos políticos, especialmente os utilitaristas, negaram que os direitos podem ter um valor intrínseco – e possivelmente pré-legal. Jeremy Bentham declarou que a concepção de direitos naturais é um ‘absurdo’, e que o conceito de ‘direitos naturais e imprescritíveis’ é um absurdo em pernas de pau’, o que, na minha interpretação, quer dizer um absurdo grandiloquente quem por uma elevação artificial e arbitrária, ganhou proeminência.” P 244

“Em contraste, se os direitos devem ser vistos não só como importantes, mas também como prioritários em relação a qualquer cômputo de consequências, então eles devem ser aceitos incondicionalmente. Na teoria libertarista, é exatamente isso o que acontece com os direitos delineados, considerados apropriados não importando as consequências que acarretem. Esses direitos, portanto, seriam partes apropriadas das disposições sociais independentemente de suas consequências.’ P 244

“No campo dos direitos de reprodução, o fato de serem considerados significativos não implica que sejam tão soberanamente importantes que devam ser protegidos inteiramente mesmo que venham a gerar desastres, miséria em massa e fome. Em geral, as consequências de ter e exercer um direito precisam, em última análise, possuir alguma influência sobre a aceitabilidade geral desse direito.” P 246

“Mas se o processo de explosão populacional prosseguir, o mundo poderá enfrentar uma situação muito mais difícil mesmo no que tange aos alimentos. Além disso, há outros problemas relacionados ao crescimento rápido da população, incluindo a superpopulação urbana e, obviamente, os desafios ambientais em âmbito regional e global. É importantíssimo examinar quais perspectivas de uma desaceleração no crescimento populacional podem ser contempladas agora.” P 246

ANÁLISE MALTHUSIANA

“Embora normalmente se atribua a Malthus a análise pioneira sobre a possibilidade de a população tender a crescer demais, a idéia de um crescimento populacional ininterrupto teoricamente acarretar uma ‘diminuição contínua da felicidade’ foi, na verdade, expressa antes de Malthus, pelo matemático e grande pensador iluminista Condorcet, o primeiro a apresentar a essência do cenário que fundamenta a análise ‘malthusiana’ do problema da população: ‘O aumento do número de homens, ultrapassando seus meios de subsistência’, resultaria em ‘uma diminuição contínua da felicidade e da população, um movimento efetivamente retrógrado, ou, no mínimo, uma espécie de oscilação entre ventura e infortúnio’.” P 246

“A discordância entre os dois [Condorcet e Malthus] ocorreu em suas respectivas concepções sobre o comportamento acerca da fecundide. Condorcet previu uma redução voluntária nas taxas de fecundidade e a emergência de novas normas para uma família menos numerosa, com base no ‘progresso da razão’.” P 246

“Malthus julgou tudo isso extremamente improvável. Em geral, viu pouca chance de resolver problemas sociais por meio de decisões arrazoadas das pessoas envolvidas. [...] Malthus demonstrou um ceticismo especial quanto ao planejamento familiar voluntário. [...] ele não viu perspectivas reais de que essa restrição viesse a ser voluntária.” P 247

“Foi em razão dessa descrença no caminho voluntário que Malthus identificou a necessidade de uma redução forçada nas taxas de crescimento populacional, redução que, em sua opinião, sobreviria com a coação da natureza. [...] O elo básico no argumento é a convicção de Malthus – e isso é o aspecto importante – de que a taxa de crescimento populacional não pode ser efetivamente reduzida por nada ‘além da dificuldade de obter com adequada abundância as necessidades de vida’. A oposição de Malthus às Leis dos Pobres e ao auxílio aos indigentes relacionava-se à sua crença nessa conexão causal entre pobreza e baixo crescimento populacional.” P 248


“Embora possa haver alguma verdade nessa idéia [‘o desenvolvimento é o melhor anticoncepcional’] duvidosa, o desenvolvimento possui vários componentes, que estiveram presentes conjuntamente no Ocidente, incluindo o aumento da renda per capita, a expansão da educação, a maior independência econômica das mulheres, a redução das taxas de mortalidade e a disseminação das oportunidades de planejamento familiar...” p 248

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO OU SOCIAL

Citação de Gary Backer

“as teorias sociais sobre o declínio da fecundidade consideram que as mudanças de preferências decorrem do desenvolvimento social, como a expansão da educação em geral e da educação do sexo feminino em particular.” P 249

“Há também a questão simples da disponibilidade de recursos para o controle da natalidade e a difusão de conhecimentos e tecnologia nessa área.” P 249

GANHO DE PODER DAS MULHERES JOVENS

“Uma linha de análise que emergiu com grande influência em anos recentes [...] atribui ao ganho de poder das mulheres um papel central nas decisões das famílias e na gênese de normas comunitárias.” P 250

“Entretanto, precisamos definir com mais clareza quais seriam os parâmetros críticos para mudar a tendência da fecundidade. Existe hoje uma profusão de evidências estatísticas, baseadas em comparações entre países e regiões diversas [...], que vinculam a educação das mulheres (incluindo a alfabetização) à redução da fecundidade em diferentes países do mundo.” P 250

“um efeito significativo sobre a fecundidade são (1) a alfabetização das mulheres e (2) a participação feminina na força de trabalho.” P 251

EXTERNALIDADE, VALORES E COMUNICAÇÃO

QUE EFICÁCIA TEM A COERÇÃO?

“Políticas como a da ‘família com filho único’ têm sido implementadas em vastas áreas da China desde as reformas de 1979. Além disso, o governo com frequência se nega a fornecer moradia e benefícios afins às famílias com muitos filhos, com isso penalizando as crianças e os adultos dissidentes.” P 252

“Além da questão fundamental da liberdade reprodutiva e outras liberdades, há ainda consequências a considerar do controle compulsório da natalidade. [...] elevando assim a taxa de mortalidade infantil [...] preferência por filhos do sexo masculino...” p 253

“Terceiro, toda mudança no comportamento reprodutivo que seja ocasionada por coerção não necessariamente será estável.” P 254

“Quarto, absolutamente não está claro que redução adicional na taxa de fecundidade foi de fato obtida na China graças a esses meios coercitivos.” P 254

Caso da redução da fecundidade de Keral na Índia, em relação à China

EFEITOS COLATERAIS E VELOCIDADE DA REDUÇÃO DA FECUNDIDADE

“Em 1979, quando a política do filho único foi introduzida na China, Kerala apresentava uma taxa de fecundidade mais elevada do que a da China: 3,0 em comparação com 2,8 na China. Em 1991, sua taxa de fecundidade, 1,8, estava tão abaixo da registrada na China, 2,0, quanto estivera acima em 1979. Apesar da ‘vantagem’ extra da política do filho único e de outras medidas coercitivas, a taxa de fecundidade parece ter diminuído muito mais lentamente na China do que em Kerala, mesmo nesse período.” P 256

AS TENTAÇÕES DA COERÇÃO

“É comum o argumento de que, em um país pobre, seria um erro preocupar-se demasiadamente com a inaceitabilidade da coerção – um luxo que apenas países ricos podem se dar – e que os pobres não se incomodam realmente com a coerção. Não está nem um pouco claro em que evidências esse argumento se baseia. As pessoas que mais sofrem com essas medidas coercivas [...] com frequência estão entre as mais pobres e desfavorecidas. [...] mesmo práticas bárbaras como tentar reunir mulheres pobres em campos de esterilização , mediante vários tipos de pressão, têm sido usadas em regiões rurais no norte da Índia ao aproximar-se o prazo para que se cumpram as ‘metas de esterilização’.” P 257-8

“Gandhi procurou implementar o controle compulsório de natalidade juntamente com a suspensão de vários direitos legais e liberdades civis.” P 258

OBSERVAÇÃO FINAL

“É importante reduzir a fecundidade não apenas por suas consequências para a prosperidade econômica, mas também em razão do impacto da fecundidade elevada na diminuição da liberdade das pessoas – particularmente das mulheres jovens – de escolher o próprio padrão de vida de acordo com seus valores.” P 260

“A solução do problema da população requer mais liberdade, e não menos.” P 260


Fichamento do capítulo 9: População, alimento e liberdade. Em: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.