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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

OS AFRO-BRASILEIROS





Por Darcy Ribeiro, em "O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil"


"Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. Arthur Ramos [...], prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues [...], distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba - chamados nagô -, pelos Dahomey - designados geralmente como gegê - e pelos Fanti-Ashanti - conhecidos como minas - além de muitos representantes de grupos menores de Gâmbia, Serra Leoa, Costa Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do Norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a 'Contra Costa', que corresponde ao atual território de Moçambique." p 102

"Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não intelegíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas. [...] A própria religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia." p102-103

"O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, conseguiam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de autorreconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil." p 106

"Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém - seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, viva a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado para arder como um graveto oleoso." p 107-8

"Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria." p 108

"A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, serviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária." p 108


- São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

ENTRE PRÁTICAS E RECURSOS TERAPÊUTICOS



SYLVIE FAINZANG[1].  ENTRE PRÁTICAS E RECURSOS TERAPÊUTICOS: As problemáticas de um itinerário de pesquisa. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. Número 15. Niterói, 2o semestre 2003.



-                “Assim sendo, pretendo mostrar, nesta exposição, como diferentes pesquisas, dotadas de objetos, situações de campo e problemáticas variadas, isto é, que se iniciam de forma distinta, podem ser perpassadas por questões convergentes e até mesmo permanentes.” P20
-                     “Meu interesse particular pelo estudo dos sistemas simbólicos que estão no fundamentos das práticas sociais nasceu precisamente da leitura deste livro de Marshall Sahlins (1980), [...] para todos [...] que se interessam pelas dimensões culturais que organizam os comportamentos humanos.”

A gestão intelectual e prática da doença em uma sociedade oeste-africana

-                     “Iniciei minha pesquisa na África junto aos bisa, [...] (hoje burkina faso) [...] centrei minhas pesquisas sobre as representações e as práticas relativas à doença [...] me interroguei particularmente sobre os meios pelos quais a sociedade se encontra dotada, em termos de gestão prática e intelectual da doença, para assegurar controle sobre os indivíduos. [...] Um espaço importante foi reservado aos estudos dos modelos explicativos da doença e dos acontecimentos em geral, aos quais os processos de acusação que eles particularmente suscitam e as práticas terapêuticas estavam estreitamente articulados.” P 20-1
-                     “A percepção social do evento-doença, que fundamenta a consulta adivinhatória, conduz o adivinho a relacionar os fatos e gestos dos consultantes e experiências passadas ou à projeção do futuro e, assim, elaborar relações causais entre fenômenos muitos diversos entre si.” Freqüentemente a doença é concebida como sanção infligida por poderes sobrenaturais, devido à infração às regras sociais, transgressão de tabus ou exprime a percepção de um conflito entre indivíduos ou entre grupos. Woso, príncipe transcendente ao universo. “Pensar a doença é tentar ordená-la sob encadeamento temporal e a lógica de eventos múltiplos. É legitimar a obediência a comportamentos sociais específicos, situados sob pontos diversos da seqüência causal, suscetíveis de lhe modificar o curso. [...] a instituição adivinhatória assume um papel de controle social.” P 21-2
-                     “A diferença é que uns (os comportamentalistas) o produzem, enquanto outros (os adivinhos) nada mais fazem do que interpretar os eventos e designá-los enquanto tais. Assim, é a gestão intelectual do evento que determina as práticas sociais.”
-                     “se levarmos em consideração precisamente a incidência do uso da categoria Woso sobre as práticas sociais, perceberemos, por um lado, que certas representações da doença são totalmente afuncionais e, por outro, que os indivíduos recorrem, às vezes, à categoria Woso para escapar à análise advinhatória, exprimindo, assim, uma resistência ao controle social.” P 22

A interpretação da doença em um distrito da região parisiense

-                     “Assim, no Ocidente, como na África, a interpretação que os sujeitos fazem da doença e os motivos que permeiam os recursos terapêuticos colocam em jogo os sistemas de pensamento e representações do real, extrapolando enormemente o domínio estritamente médico. O antropólogo deve então se dedicar a estudar e decodificar estes aspectos.” P 23
-                     “procurei colocar em relevo, a partir do que o estudo da antropologia da doença pode nos trazer sobre estas sociedades, quais são os pontos comuns nos seus respectivos sistemas simbólicos. [...] E que, para além das diversidades culturais, podemos identificar aspectos universais no que diz respeito à relação com o mal, com a doença e com os infortúnios em geral. O objetivo desta pesquisa era perceber como as representações da doença se integram a outros sistemas simbólicos; revelar as lógicas que conduzem aos recursos terapêuticos, em particular, estudar a articulação e a coerência entre representações da doença e estratégias terapêuticas; e perceber como estas últimas se articulam, por sua vez, com a especificidade cultural dos diferentes grupos.” P 23-4
-                     “Um dos grandes eixos da minha pesquisa consistiu, portanto, em enumerar e trazer à tona os diferentes modelos explicativos da doença. Para tanto, dei atenção particular aos processos de acusação desencadeados pela sua aparição; e aos sistemas de pensamento que os fazem surgir. Enfim, de maneira mais ampla, tentei entender suas condições de existência.”
-                     “Os resultados da pesquisa me permitiram constatar que o discurso social sobre a doença pode ser visto como uma linguagem de tensões sociais, fornecendo o meio de expressão da tensão entre os indivíduos e entre os grupos. [...] Ele é revelador de conflitos interpessoais e sociais. Conseqüentemente, dei-me conta de que, nas sociedades em que a bruxaria tem relevância (seja na África ou na França), falar de doença é anunciar a relação do doente com os outros [...] O discurso sobre a doença funciona, portanto, como uma grade de leitura de relações sociais e se exprime segundo modalidades específicas, de acordo com o pertencimento cultural dos sujeitos.” P 24-5
-                     “O conjunto de estudos de casos realizados nos diferentes meios culturais estudados me conduziu a reconhecer quatro modelos de acusação: 1. a auto-acusação; 2. a acusação de um outro próximo (ou familiar); 3. a acusação de um outro distante (ou estranho); 4. a acusação da ‘sociedade’.”
-                     “Assim, o estuda da causalidade nas sociedades de linhagem revela a referência massiva ao modelo de auto-acusação e ao modelo de acusação do Outro. Em contrapartida, não se encontram nos discursos produzidos pelas sociedades de linhagem os modelos de acusação da sociedade, tais como eles são formulados pelas sociedades ocidentais. [...] os discursos interpretativos africanos revelam uma resistência à reprodução almejada pela etiologia social, eles jamais colocam em questão os valores partilhados. Eles tendem somente a promover estratégias pessoais, que não visam ser denunciadoras da ordem social. Distinguem-se, assim, dois modelos de causalidade: uma causalidade subversiva e uma reprodutiva.”
-                     “Mas ela [minha perspectiva] procurou igualmente se distinguir daquela elaborada por antropólogos, para os quais não existe diferença entre experiência científica e experiência mágica. Meu propósito foi, ao contrário, mostrar a profunda analogia entre os modos de pensamento tradicionais africanos e os modelos teóricos da sociedade ocidental.” P 25-6
-                     “A observação revela que a interpretação que os sujeitos têm da doença possui uma incidência sobre os recursos terapêuticos, assim como sobre os seus comportamentos quotidianos.”
-                     “Como o discurso sobre a doença corresponde a uma grande leitura das relações, que o sujeito estabelece com os seus próximos ou com outros grupos sociais, a significação adotada não pode ser imediatamente abandonada. Ignorá-la é abandonar a acusação pela qual as relações se estabelecem. É negar a validade do olhar que o sujeito incorpora sobre a sua inscrição social. (FAINZANG, 1988, 2000).”
-                     “Em cada um destes casos, a conduta terapêutica do doente é função da lógica interpretativa à qual ele adere. A propensão do doente a dar um sentido à sua doença e a lhe atribuir uma causa leva-o a procurar a medicina que lhe oferecerá – pelo diagnóstico que ela elabora – o máximo de coerência com sua própria percepção da doença. Em decorrência, a prescrição que possa ser considerada como a mais adequada para responder eficazmente ao seu caso particular.”p 27

Sexualidade e reprodução no meio africano imigrante

-                     “o Ministério dos Direitos da Mulher me solicitou a realização de uma pesquisa sobre as mutilações sexuais no meio africano imigrante. Assim, entrei em contato com mulheres originárias do Mali e do Senegal com o objetivo de discutir com elas as práticas relativas à clitoridectomia, [...] estas mutilações revelavam o desejo de inscrever as relações sociais sobre os corpos.”
-                     “Os materiais coletados revelam, de fato, o que o ‘trabalho’ realizado sobre os corpos não visa somente confirmar a diferença biológica entre os sexos, mas também corrigir o sexo biológico de maneira a tornar possível, para a pessoa socializada como feminina ou masculina, o estatuto que lhe é atribuído. E, nessa medida, reduzir ou suprimir o que, na mulher, é concebido como equivalente do sexo masculino, criando então condições (fisiológicas) de dominação (social) do homem sobre a mulher.” Relação entre excisão e circuncisão. P 28

Representações e gestão do alcoolismo em um movimento de antigos bebedores

-                     “Assim que terminei minhas pesquisas sobre a interpretação da doença em Ville-du-Bois, fui levada a dar um certo direcionamento ao objeto de estudo, passando da doença em geral para a ‘doença alcoólica’ em particular, e, mais precisamente, a um movimento de antigos bebedores: Vie Libre.” P 29
-                     “Assim, segui a questão da interpretação da doença, estudando os modelos explicativos do alcoolismo, conforme são elaborados no seio do movimento dos antigos bebedores Vie Libre. Enquanto para a maioria dos etnólogos tomar o alcoolismo como objeto é levar em consideração o alcoolismo como um modo de vida, ou o traço de uma cultura, eu, ao contrário, tratei de restituir o ponto de vista êmico de uma associação de antigos bebedores, retendo a equivalência ‘alcoolismo-doença’.” P 30
-                     “Conduzi, desta forma, uma reflexão sobre a teoria da causalidade elaborada a propósito do alcoolismo por este movimento. Todavia, os discursos explicativos do alcoolismo não se reduzem ao discurso doutrinal. [...] A questão da relação que o indivíduo mantém com a doença se integra inevitavelmente à problemática da relação frente ao Outro. [...] Desse modo, também procurei compreender o que representa e simboliza o álcool nesta perspectiva. Trata-se de saber se a eficácia de adesão do sujeito a este tipo de associação é tributária da adoção de certos esquemas de causalidade e, eventualmente, de uma reconversão no plano da percepção das causas do alcoolismo e da imputação de responsabilidades, questão que se relaciona com a dos sistemas interpretativos da doença. [...] Assim, a pesquisa permitiu observar a imbricação de vários tipos de discursos, cuja coexistência se torna possível pela sua adaptação tanto ao discurso doutrinal do movimento Vie Libre, quanto à responsabilidade que ele atribui ao álcool, enquanto encarnação metonímica da sociedade.” P 30-1
-                     “O estudo do sistema simbólico articulando as representações dos efeitos do álcool sobre o corpo do alcoolista (em particular, sobre importantes órgãos como o cérebro, bem como nervos e sangue) e o papel destas desordens fisiológicas sobre a formação de seu comportamento social permitiram compreender, por exemplo, as razões das reticências manifestadas pelos homens alcoolistas com o tratamento psiquiátrico.”
-                     “Vie Libre gerencia, de uma maneira específica, a identidade do doente.” P 32
-                     “Por outro lado, o trabalho de campo me permitiu constatar que, no Vie Libre, cônjuges dos doentes, mesmo que não bebedores, tendem a se considerar doentes tanto quanto os próprios alcoolistas, atribuindo sua doença ao contágio. [...] Este dado me conduziu à investigação sobre o conteúdo da idéia de contágio. As representações do alcoolismo como doença ‘contagiosa’ [...] enraizadas na noção de doença coletiva desenvolvida pelo movimento, não são resultantes de um desconhecimento das modalidades de emergência desta ‘doença’, mas da tradução de uma concepção de alcoolismo que lhe atribui a capacidade de afetar fisiologicamente os indivíduos que se encontram em uma relação social estreita com o doente.”
-                     “Minha tarefa era, portanto, compreender o sentido de condutas aparentemente incoerentes (como, por exemplo, o fato de um doente recorrer a uma instância terapêutica que ele julgue menos eficaz) e saber o que está em jogo na determinação destes recursos. [...] O estudo das situações em que esta defasagem pudesse ser observada evidenciou os motivos ou os empreendimentos capazes de explicá-la, mediante a proposta da noção de ‘estratégias paradoxais’. Por esta noção, designei tanto as condutas adotadas com fins terapêuticos, mas geradoras de condições patológicas capazes de reforçar o mal contra o qual o sujeito procura lutar [...] Trata-se de estratégias adotadas, de maneira explícita, para resolver um problema de saúde, e, de maneira implícita, para responder a outras necessidades, dando lugar a uma outra lógica.” P 32-3
-                     “Hoje, todavia, parece-me necessário distinguir: de uma parte, as condutas elaboradas com fins terapêuticos, mas cujos efeitos são contrários; e, de outra parte, as condutas que são elaboradas com outros fins não terapêuticos, porque elas são supradeterminadas por outras questões (mas seguidamente de ordem relacional).”

As atitudes culturais em face da receita e dos medicamentos

-                     “[...] decidi estudar as condições de uso da receita médica [...]” p 34
-                     “fixei-me sobre as relações entre representações e práticas sociais relativas à doença, desejei compreender a relação entre o pertencimento cultural e as estratégias terapêuticas, limitando o pertencimento cultural à origem religiosa, e as estratégias terapêuticas às condutas quanto às prescrições médicas.”
-                     “O conjunto dos resultados obtidos revela a relação que estes pacientes, e diferentes grupos culturais, mantêm com a autoridade médica, comparável com a atitude dos pacientes praticantes diante da autoridade religiosa. Além do nível sociocultural dos indivíduos, observamos, por exemplo, mais por parte dos pacientes de origem católica e muçulmana do que por parte dos pacientes de origem judia e protestante, uma submissão mais forte em relação ao médico.” P 35

A mentira na relação médico-paciente

-                     “Portanto, decidi investigar particularmente a prática da mentira e estudá-la como uma prática social como tantas outras, para analisar os resultados e suas significações de um ponto de vista antropológico. Esta prática ainda me interessava pelo fato de que ela correspondia  ao que eu considerava como ‘condutas paradoxais’. [...] A mentira se apresenta como um paradigma da conduta paradoxal, pois ela consiste em esconder a realidade e, conseqüentemente, em impedir o médico de exercer plenamente seu papel.” P 36
-                     “No entanto, a mentira não é uma conduta apenas dos pacientes, ela é também praticada pelos médicos. [...] por mais racional que ela possa ser (por razões sociológicas e/ou terapêuticas, a mentira do médico é comumente objeto de uma racionalização, uma vez que é pelo ‘bem’ do paciente que o médico mente) [...] Enfim, a mentira apresenta-se como um produto da relação médico-paciente e escapa à explicação pela razão terapêutica, uma vez que ela é subentendida pelas lógicas culturais e sociais.” P 36-7


[1] Pesquisadora do INSERM – Institut National de la Santé et Recherche Médicale e do CERMES – Centre de Recherche Médécine, Sciences, Santé et Societé.

domingo, 23 de novembro de 2014

1 kg de sal

Conhece alguém, quando só ontem
O já trilhado é caminho e destino
Ou mito não dito no passado,
Omitido no whisky ou no vinho
 - um misto de risco
Nada mais, que um quilo de sal
– além, são sais,
 os sentidos,
segredos e abrigos.

Rodolfo Lobato (novembro/2014)

Geografia da Fome - Introdução e a Área Amazônica



CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1957.

“Le mensonge héroique est une lâcheté. Il n’y a qu’un héroisme au monde: c’est de voir le monde tel qu’il est, et de l’aimer.” Romain Roland

PREFÁCIO DO AUTOR

“se fizermos um estudo comparativo da fome com as grandes calamidades que costumam assolar o mundo – a guerra e as pestes ou epidemias, - verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome.” P 20

“Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? [...] Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma de nossa cultura: foram os interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana.” P 20

“A demonstração muito efetiva da mudança radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na realização da Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das conferências convocadas pelas Nações Unidas para tratar de problemas fundamentais à reconstrução do mundo de após-guerra. Nesta conferência reunida em 1943, e que deu origem à atual Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas – a F.A.O. – quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as condições reais de alimentação dos seus respectivos povos....” p 23

“Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva [...] Para tal fim pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome.” P 24

“Neste ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos, ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados.” P 25

“Não é esse tipo de fome [individual], simples traço melodramático no emaranhado desenho da fome universal, que interessa ao nosso estudo. O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas.” P 26

Starvation – fome em inglês associada a áreas de miséria

“... fome parcial, da chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.” P 27

“Buscando essa valorização dos fatores de categoria biológica, não quer dizer que desprezemos a importância dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria do latifundismo agrário-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto é inegável.” P29

“Não foram razões de ordem sentimental, nem de supervalorização patriótica que nos ditaram essa conduta: foram razões de ordem didática. O Brasil constitui o nosso campo de observação e de experimentação diretas do problema. [...] O seu vasto território, com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial superúmido da Amazônia até o tropical seco e semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical com seus variados tipos de organização econômica, apresenta condições excepcionais para uma larga investigação do problema da alimentação nos trópicos. Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social deste problema.” P 32

Prefácio assinado em 1956, Rio de Janeiro.

INTRODUÇÃO

“Quando se lê ou se ouve falar em fomes coletivas, em angustiadas massas humanas atacadas e morrendo à falta de um pouco de comida, as primeiras imagens que assaltam a nossa consciência são as imagens típicas do Extremo Oriente. [...] Massas pululantes de esquálitos coolies chineses.” P 39
“Imagens dos campos de concentração e das cidades e dos campos europeus devastados pela tirania nazi durante a última guerra mundial.” P39

“... para aqueles que têm conhecimento da fome apenas através dos jornais, reduzem-se a estas duas grandes regiões – o Oriente exótico e a Europa devastada – as áreas de distribuição da fome...” p39-40

“Na realidade, a fome coletiva é [...] um fenômeno geograficamente universal [...] se os estragos desse flagelo na América não são tão dramáticos [...] esses estragos se fazem sentir mais sorrateiramente, minando a nossa riqueza humana numa persistente ação destruidora, geração após geração.” P 40

“Os inquéritos sociais e os levantamentos estatísticos levados a efeito em diferentes zonas do continente vieram mostrar que por toda parte as populações americanas continuam expostas às consequências funestas da subnutrição e da fome.” P 40

“Carências protéicas, carências minerais, carências vitamínicas.” P 41

“Milhões de seres humanos o têm vivido durante séculos silenciosamente, com uma resignação que aproxima, sob este aspecto, os povos americanos dos povos do Oriente.” P 42

“Numas regiões [ do Brasil], os erros e defeitos são mais graves e vive-se num estado de fome crônica; noutras, são mais discretos e tem-se a subnutrição.” P 42

“O país abrange pelo menos cinco diferentes áreas alimentares, cada uma delas dispondo de recursos típicos, com sua dieta habitual apoiada em determinados produtos regionais e com seus efetivos humanos refletindo, em muitas de suas características, tanto somáticas como psíquicas, tanto biológicas como culturais, a influência marcante dos seus tipos de dieta. Cinco áreas bem caracterizadas e assim distribuídas: 1) Área da Amazônia; 2) Área da Mata do Nordeste; 3) Área do Sertão do Nordeste; 4) Área do Centro-Oeste; 5) Área do Extremo Sul...” p 43

“Para que uma determinada região possa ser considerada área de fome, dentro do nosso conceito geográfico, é necessário que as deficiências alimentares que aí se manifestam incidam sobre a maioria dos indivíduos que compõem seu efetivo demográfico.” P 44

II
ÁREA AMAZÔNICA

“A região da Amazônia representa, sob o ponto de vista ecológico, um tipo unitário de área alimentar muito bem caracterizado, tendo como alimento básico a farinha de mandioca.” P 45

“Região com uma população de tipo homeopático, formada de gotas de gente salpicadas a esmo na imensidade da floresta, numa proporção que atinge em certas zonas à concentração ridícula de um habitante para cada 4 km quadrados de superfície. [...] Sem forças suficientes para dominar o meio ambiente, para utilizar as possibilidades da terra, organizando um sistema de economia produtiva, as populações regionais têm vivido até hoje, no Amazonas, quase que exclusivamente num regime de economia destrutiva. Da simples coleta dos produtos nativos, da caça e da pesca. Da colheita de sementes silvestres, de frutos, de raízes e de casca de árvores. Do látex, dos óleos e das resinas vegetais.” P 46-7

“Apenas em zonas limitadas e utilizando processos rudimentares se estabeleceu uma cultura primitiva de certos produtos de alimentação, como as da mandioca, do milho, do arroz e do feijão.” P 47

Chibé
Beijus

“A terra é quase que inteiramente açambarcada pelas plantas, restringindo-se a vida animal sobre o solo às formigas e outros insetos, às cobras e aos macacos e a variedades de espécies de pássaros. São, pois, limitadas as possibilidades de caça para abastecimento alimentar. A pesca rende muito mais e contribui para a dieta local com elementos mais ricos e variados. Sejam peixes de água doce [...] sejam crustáceos ou moluscos, camarões, siris, avius, caranguejos e ostras. Do que também fazem abundante uso os nativos para sua alimentação é das tartarugas, das quais consomem tanto a carne como os ovos.” P 50

“A floresta é um obstáculo à criação de gado.” P 51

“Apenas recentemente, através do Instituto Agronômico do Norte foi introduzido em Marajó o búfalo africano, animal rústico e de relativas possibilidades de adaptação econômica ao meio hostil a raças selecionadas e de alta produção, seja de carne, seja de leite. Ainda assim, e contrariando o esforço de racionalização da pecuária, essa rusticidade do búfalo está sendo explorada no sentido de não lhe ser prestada qualquer espécie de assistência zootécnica, e as adaptações a que o meio lhe obriga, nem sempre são favoráveis aos interesses econômicas e aos fins sociais.” P 52

“Estas limitações que a natureza impõe à pecuária, a falta de transporte entre zonas de criação e o resto da região amazônica, não facilitam o seu abastecimento nem de carne nem de leite. [...] Carne, só seca e salgada.” P 53

“Se a inundação destrói muitas vezes o duro trabalho agrícola também traz dissolvida nas águas das cheias o sedimento rico em elementos minerais e orgânicos que ficarão depositados sobre o solo quando as águas baixarem.” P 53-4

“As populações do Amazonas sempre classificaram os rios da região em dois grupos: os rios negros e os rios brancos. Os negros tendo as águas translúcidas, carregadas apenas dos reflexos profundos das sombras escuras da floresta, e os brancos com as suas águas turvas, barrentas, ricas de materiais de aluvião. São as águas dos rios brancos as que fertilizam o solo equatorial do Amazonas. [...] A verdade é que o excesso de chuvas lavando permanentemente este solo, aliados a outros fatores de intemperismo regional, o empobrece de maneira alarmante, e a agricultura sem a adubação das enchentes esgota as suas reservas numa rapidez assustadora. Esta é uma das razões que sempre obrigaram as populações indígenas a viver nesta região num regime seminômade, derrubando a floresta num ponto, semeando um pouco de milho, de arroz e de mandioca, colhendo a seguir o produto e abandonando a roça para abrir outra clareira mais adiante. É que o rendimento de uma segunda plantação já não compensaria o trabalho nem permitiria o abastecimento suficiente do grupo, expondo-o aos perigos da fome aguda.” P 54-55

“É preciso não esquecer que na elaboração destas comidas entram certos molhos preparados com sucos de ervas locais e de pimentas [...] Os indígenas sempre foram grandes comedores de pimenta [...] O consumo de verduras e de legumes verdes foi muito baixo nesta região. O complicado cultivo da horta está muito acima da técnica agrícola local [...] As frutas também, com exceção do açaí, entram em muita pouca quantidade no regime alimentar habitual.” P 55 

Buriti
Castanha do Pará

“A análise biológica e química da dieta amazônica revela um regime alimentar com inúmeras deficiências nutritivas [...] É uma alimentação parca, escassa, de uma sobriedade impressionante.” P 57

“Para bem compreendermos quais os principais defeitos deste tipo de alimentação da Amazônia, precisamos analisa-la de acordo com os modernos conhecimentos de nutrição e de acordo principalmente com as variantes fisiológicas que o clima impõe ao metabolismo nas condições de vida tropical. Variantes que dão ao metabolismo do homem dos trópicos um ritmo especial e alteram inteiramente os limites quantitativos de suas necessidades nos diferentes princípios alimentares.” P 58

“O clima amazônico de tipo superúmido, com uma umidade relativa do ar que anda quase sempre pela casa dos 90%, alcançando a todo momento o ponto de saturação do ar em umidade, condiciona forçosamente ao organismo humano uma sensível baixa do seu metabolismo. Quem conhece o mecanismo da formação e da perda de calor nos seres vivos compreende logo que esta diminuição do organismo em suas combustões internas representa um processo de adaptação funcional, um processo prático de evitar a sua destruição por superaquecimento, diante das dificuldades que o meio ambiente opõe às perdas do calor animal. No excesso de temperatura e de umidade reinantes, o organismo não dispõe de outros meios para se desfazer do seu calor interno senão o de diminuir a sua formação, isto é, baixar o seu metabolismo.” P60

“Na insuficiência alimentar quantitativa e na forçada adaptação orgânica a esta situação permanente, residem as explicações da apregoada preguiça dos povos equatoriais. A preguiça no caso é providencial: é um meio de defesa de que a espécie dispõe para sobreviver, e funciona como o sinal de alarma numa caldeira que diminui a intensidade de suas combustões ou para mesmo automaticamente, quando lhe falta o combustível.” P 61

“O déficit proteico resulta da quase que ausência de alimentação absoluta, no regime alimentar desta gente, das fontes de proteínas animais: carne, leite, queijo e ovos. [...] Já vimos que destas fontes de proteínas completas as populações locais apenas dispõem da carne de peixe, e isto mesmo de maneira irregular e em quantidade insuficiente. [...] Seria necessário, não só pescar em quantidade bem maior do que se faz atualmente, como industrializar o produto da pesca sob a forma de peixe seco, salgado ou desidratado... “ p 61-2

“Quase que só dispondo de fontes de proteínas vegetais, o regime local é deficiente em certos ácidos aminados. Deficiência que se revela de logo pelo crescimento insuficiente, pela estatura abaixo do normal...” p 62

“O que salva o amazonense é que ele não come farinha pura como o mexicano se alimenta, dias e dias, exclusivamente de milho. Um pouco de feijão, de arroz ou de batata e vez por outra o seu peixe, ou seu tracajá ou jabuti, sempre o homem da Amazônia obtém para variar o seu regime, diminuindo desta forma a deficiência proteica da farinha.” P 63

“Ao lado das deficiências proteicas ocorrem certas deficiências em sais minerais bem graves para as populações amazônicas. O primeiro fator dessas carências minerais é a pobreza do solo regional [...] As chuvas contínuas [...] agindo paralelamente à temperatura elevada, estimulam a ação de microrganismos do solo, decompondo com extrema velocidade a matéria orgânica e o húmus ali existentes...” p 64

“Quando a este fator – a pobreza mineral dos alimentos – se juntam erros de dietética, como é o caso da região amazônica, aumentam as probabilidades de incidência das carências minerais no homem. Destas carências, as mais acentuadas nesta zona são as de cálcio, ferro e cloreto de sódio.” P 66

“O solo é pobre em cálcio. As águas e os alimentos ali produzidos são também pobres em cálcio.” P 67

“O que é de admirar, à primeira vista, é que com tal exiguidade de cálcio em sua alimentação, não sofram de raquitismo endêmico os habitantes desta área, com crianças de pernas tortas e de ‘tórax de pombo’, de cabeças deformadas com seus ossos amolecidos à falta de cálcio que lhes dê consistência. Nada disse existe na região do Amazonas. [...] A explicação do fato encontra-se na extraordinária riqueza de insolação regional que é fonte de vitamina D em cuja presença se torna difícil o aparecimento do raquitismo.” P 67

“Se não há o raquitismo exteriorizando a carência em cálcio, há, no entanto, uma grande incidência de cáries dentárias...” p 68

“Por conta do déficit em ferro apresenta-se na região um tipo característico de anemia, que durante muito tempo foi atribuído à ação direta do clima. [...] Hoje se sabe que essa anemia é apenas uma consequência da fome específica em ferro necessário para fabricação dos glóbulos vermelhos. Os trópicos não exigem mais ferro nem destroem maior número de glóbulos [...] A alimentação nas várias áreas tropicais é que não subscreve, em geral, uma taxa adequada às necessidades normais do organismo...” p68-9

“o fenômeno da geofagia ou geomania, do hábito ou mania de comer terra. Hábito que a nosso ver traduz quase sempre um tipo de fome específica, ...” p 69

“A anemia tropical não é, portanto, uma fatalidade climática; não é um produto direto do clima agindo sobre o organismo humano num determinismo inexorável.” P 69

“O déficit em cloreto de sódio é bastante acentuado e resulta tanto de fatores naturais como culturais. [...] Clima equatorial que, acarretando uma transpiração excessiva, espolia o organismo em estremo das suas reservas de cloreto de sódio. [...] Para compensar tamanha perda de cloreto de sódio seria necessário ingerir alimentos excessivamente salgados ou contendo em sua composição química altas doses deste princípio nutritivo. [...] A alimentação amazônica, na qual ainda hoje predominam intensamente os hábitos e tradições indígenas, é uma alimentação com pouco ou nenhum sal. O tempero que o índio sempre admirou foi a pimenta.” P 70-1

“os patologistas europeus tinham notado que, em casos de uma doença que provoca uma fadiga aniquilante – a insuficiência supra-renal – sempre se apresenta um desequilíbrio sódio-potássico neste mesmo sentido. É por isto que nós afirmamos ocorrer nos trópicos uma espécie de insuficiência supra-renal climática, pelo menos em sua síndrome humoral, que só pode ser combatida com uma alimentação muito rica em sal. Vemos assim que, se nos casos do déficit em ferro a ação do clima é remota, fazendo-se sentir indiretamente, no caso do sódio é imediata, é direta. Estes dois exemplos mostram como é complexo o fenômeno da aclimação. Como é ingênuo afirmar-se ou negar-se em bloco, sem maiores discriminações, a ação dos climas sobre o homem, em obediência a escolas sociológicas, limitadas a pontos de vista unilaterais.” P 73

“Qual a razão pela qual o branco se fadiga mais depressa do que o negro ou o índio? Pode haver várias explicativas, mas o que não resta dúvida é que um dos fatores desta diferença fundamental reside no fato de que o índio e, principalmente, o negro perdem muito menor quantidade de cloreto de sódio através da sudação do que o branco. [...] Trata-se realmente de uma superioridade biológica? Não. Primeiro, que não existem superioridades ou inferioridades raciais. [...] O que é uma superioridade nas regiões polares pode constituir uma inferioridade nos trópicos e vice-versa.” P 74
“Os negros e os índios perdem menos quantidade de sal pela sudação por conservarem a sua pele nua, não recoberta pelo vestuário.” P 75

“Das carências vitamínicas as mais generalizadas são as dos elementos componentes do complexo B. [...] Isto explica que em vários continentes as áreas de mandioca seja áreas de beribéri – doença causada pela carência de vitamina B1, também chamada tiamina: a área amazônica, na América, e área da bacia do Congo, África.” P77

“A maior parte dos desbravadores da borracha que ali chegavam, atraídos pelo rush do produto, foi derrubada pela terrível doença [beribéri]. [...] Defumavam a borracha. E quando estavam se sentindo donos do mundo, começavam a sentir o chão fugindo debaixo dos pés, a sentir as pernas moles e bambas, a dormência subindo dos pés até à barriga. [...] Era o beribéri chegando, tomando-lhes conta do corpo, roendo-lhes os nervos, acabando com a vitalidade do aventureiro nordestino.”p 79

Consequências da supervalorização da borracha: “Com a paralização da pesca e com os rebanhos abandonados, afogando-se à míngua nas enchentes, com a agricultura parada por falta de braços, enfim, com todas as fontes de riqueza local se desmoronando, a alimentação regional sofreu tremenda crise.” P80

“A partir do momento em que se acabou o monopólio da borracha, em que o produto da planta cultivada no Extremo Oriente concorreu e sobrepujou a planta nativa do Vale Amazônico, com a crise econômica que então surgiu, com os preços da borracha caindo assustadoramente, os negociantes do produto abrindo falência, a economia da região em colapso, o beribéri, como se fosse alimentado por esta própria economia, também começou a declinar.” P81

“Assim se fechou o ciclo da terrível doença, ciclo que tem suas analogias com o do escorbuto no Alasca durante a febre do ouro.” P81

“O regime alimentar magro, quase sem gorduras animais, sem leite, sem manteiga e com poucas folhas verdes é, sem nenhuma dúvida, pouco abundante em vitamina A.” p82

“O que é comum nessa área (Amazônia) é a hipovitaminose relativa, denunciada pela falta de crescimento, pela visão até certo ponto deficiente e, principalmente, pelas perturbações cutâneas; pelas manchas escuras da pele, pelo aumento de suas rugosidades que a transformam num couro grosso e áspero com espículos em torno dos folículos pilosos. São grupos humanos com a pele lembrando o couro do jacaré, seu companheiro da fauna amazônica.” P82

“O consumo habitual dos molhos apimentados, dos sucos de ervas fermentadas e misturadas com pimenta, como o tucupi, o tacacá e o arubê, molhos que constituem o sal e o tempero comum do peixe, da caça e dos bolos de mandioca da Amazônia, afasta estas populações dos perigos das carências completas em vitamina C.” p83

Curaçau – Ilha da Curação. Página 84

“a verdade é que se as riquezas da região amazônica não são tão fabulosas como suas lendas, nem o seu clima é dos mais acolhedores do mundo, seria, no entanto, possível vencer estas dificuldades e desenvolver o povoamento da região desde que sua colonização fosse realizada dentro de um plano de aproveitamento racional e não de intempestiva destruição. Destruição da riqueza vegetal com as seringueiras sangradas até a última gota de seu látex, com os peixes e as tartarugas destruídos sem discernimento, quase até o extermínio das espécies. Sem nenhuma preocupação de melhorar os processos de agricultura primitiva nem de ampliar a sua área de cultivo.” P 87

“Assim se apresenta o caso da conquista econômica da Amazônia: luta tenaz do homem contra a floresta e contra a água. Contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada abundância da água dos seus rios. Água e floresta que parecem ter feito um pacto de natureza ecológica, para se apoderarem de todos os domínios da região. O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive o homem...” p88

“ ‘Numa região em que a natureza se concentrou para resistir, o homem se dispersou para agredi-la’, diz Viana Moog com muita penetração. De fato, o homem amazônico, longe de formar grupos, tentou penetrar na floresta como indivíduo, isolado num heroísmo individual sem precedente na história das colonizações. Numa louca aventura solitária, vivida no silêncio da floresta.” P 89

“Com este tipo de colonização, de tão acentuada marca medieval, formou-se a nossa estrutura social com esse caráter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefação, de que nos fala Oliveira Viana, esparramando-se o organismo social, ralo e superficial, por extensões que não podiam ser alcançadas pelo organismo político, sem capacidade de irradiação.” P90

“Já o general Kundt, que sonhava com a colonização da Amazônia e sua transformação num celeiro para o mundo, através de gigantesco plano de povoamento, salientava não se tratar de uma região a ser confiada ao povoador individual mas à organização colonizadora sistemática.” P91

Fordlândia e Beltarra pgs 91-2