Passo de Gigante

Faz de conta...









quarta-feira, 15 de abril de 2015

Artérias Latinas

Triste dia,
Eduardo Galeano morreu.
Não era só um escritor,
era como um avô meu.
Nas tintas,
desencontros, medos,
violência, feridas.
Na América Latina,
encontros, consciências,
esperanças, vidas.
E hoje, em seu barco,
não precisarás de moeda,
Leva a paz, e com ela
- descansará mais.

Divitae enim apud spientem virum in servitute sunt, apud stultum in imperio
Seneca
"as riquezas estão a serviço do sábio, mas comandam o estúpido"


Rodolfo Lobato
Rio de Janeiro, 14 de abril de 2015

terça-feira, 14 de abril de 2015

O PROBLEMA DOS LATIFUNDIOS

Por Oliveira Vianna
Publicado em 10.01.1939*

Tenho sobre minha mesa um memorial, que do Norte me envia o seu autor, aliás anonymo. Nelle são debatidas duas questões da maior actualidade, porque se prendem, sem duvida, ao problema da nossa "marcha para o Oéste": uma é a dos latifundios, que o memoralista condemna; outra, a da exploração collectiva da terra, que concatena e applaude.

Não partilho da crença do autor e de muita gente de que é preciso acabarmos com os latifundios existentes em nosso paiz, nem creio que haja vantagem em realizarmos, á maneira mexicana, uma transformação brusca neste sentido. Na verdade, os latifundios se acabarão por si mesmos; pela acção lenta, mas segura, da lei das successões; pela  força mesma da nossa evolução social; pela elevação progressiva do indice de densidade demographica com o augmento inevitavel e incoercivel da nossa população. Os dados estatisticos, relativos á evolução da pequena propriedade em São Paulo, recentemente publicados, demonstram, aliás, cabalmente, que não passa de lenda a preponderancia do regimen latifundiario em paiz. O mesmo acontece com os dados ultimamente colligidos e divulgados sobre a distribuição da propriedade rural em Pernambuco.

Os latifundios existem, sem duvida; mas, por força mesma das condições geographicas e domographicas em que vive o nosso povo. Nascem da falta de gente - e não da injusta apropriação do solo por uma oligarchia privilegiada e odiosa: entre nós, o latifundiario pede o povoador, o colono; não o repelle.

O movimento contra os latifundios privados, esboçado em nosso meio desde os começos da Revolução de 30, carece de fundamento na nossa realidade; tem um caracter meramente reflexo - de imitação. É uma reproducção do que se está fazendo em outros povos por motivos, aliás, muito differentes dos nossos: ou por necessidade de dar à plebe rural, faminta e espoliada, uma satisfação á sua revolta, como vemos na Europa (v. Perroux - La reforme agraire en Europe, 1935); ou por simples ideologias extremistas, nascidas de antagonismos raciaes, como no Mexico (v. Marchand - L'effort démocratique du Mexico, 1938).

No nosso paiz não temos nada disto: nem ha falta de terras, nem ha antagonismos raciaes. Muito ao contrario disto, é a sombra do nosso velho regimen patriarchal, ainda dominante no interior dos nossos campos e sertões, que a massa inferior da nossa população rural vive, abrigada, assistida, protegida. O Brasil evoluiu e progrediu á sombra das grandes organizações latifundiarias, sob as quaes as classes que trabalham a terra construiram, e continuam a construir, a nossa riqueza rural. Se inconvenientes podem ter havido dessas organizações latifundiarias elles foram eliminados pela acção desintegradora, a que a lei das partilhas tem sujeitado, desde os primeiros seculos, as [PARTE ILEGÍVEL DO JORNAL] É preferivel, pois, deixarmos que a propriedade territorial em nosso paiz continue, sem modificações violentas, a obedecer o rythmo da sua evolução histórica.

Isto não impede que procuremos desenvolver a pequena propriedade. Ella é essencial á constituição de uma classe média rural, lacuna historica da nossa estructura de povo, que tantos reflexos tem tido sobre a nossa vida social e politica, principalmente politica, como deixei demonstrado em Populações Meridionaes. Nada nos impede que a constituamos pelo retalhamento das nossas terras publicas, dos vastos latifundios pertencentes ao Estado; pela desapropriação quando desaproveitadas ou mal aproveitadas, das terras marginaes ás linhas ferroviarias ou vias fluviaes; ou ainda pela desapropriação dos latifundios privados, mesmo fora das zonas marginaes das estradas de ferro e vias fluviais, todas as vezes que se verificar ser mais benefico exploral-os pelo systema da pequena propriedade ou da pequena cultura.

No fundo, o que temos a fazer, se quizermos attender a suggestão do memorial, é distender o campo de applicação das nossas leis de colonização, até agora muito limitado, por assim dizer quasi que restricto ás regiões do sul, de modo a contemplar tambem as vastas regiões desertas ou abandonadas das nossas regiões septentrionaes. Nesta distenção do nosso programma colonizador, bem poderíamos aproveitar a opportunidade para, intensificando a nossa politica de colonização e povoamento, realizar o aproveitamento systematico do elemento nacional, evidentemente um tanto desprezado nesta obra de fixação do homem à terra. Tendo grandes massas de "desplantados" e de "infixos", especialmente nas nossas regiões do Norte, onde o rythmo das seccas desloca massas tão consideraveis de população humana, espalhando-as por todos os recantos do paiz, nada é mais razoavel do que procurarmos aproveitar estes elementos nacionaes, assim dispersos, para a constituição de nucleos coloniaes, á semelhança do que fazemos com os colonos estrangeiros, que aqui abrigamos e amparamos generosamente.

O memorial, que estou comentando, trata tambem de um outro assumpto não menos interessante e que exige algumas considerações. É aquelle em que o autor preconiza a organização destes nucleos coloniaes sobre bases de um regimen cooperativo. Pelo plano do memorial, em vez de dividir-se a terra em lotes, para distribuil-os com os colonos sob um regimen de propriedade individual, os colonos explorariam os terrenos dos nucleos collectivamente e sob um regimen cooperativista. Qualquer coisa que recorda o systema das kolkhoses russas...

Não diz o autor qual a fórma de organização cooperativa que desejaria fosse adoptada. Será a dos famosos "consorcios syndicaes-cooperativistas", creados, não ha muito, pelo Ministerio da Agricultura? ou será o systema das affittanze colletive, adoptados pelos agricultores italianos na exploração de alguns dos seus grandes dominios agricolas?

O que a experiencia tem monstrado, na generalidade dos paizes, é que o systema coóperativo integral não dá grandes resultados. O lavrador, quando é, ao mesmo tempo, pequeno proprietario, quer certa autonomia na direcção do seu trabalho e na disposição dos productos delle - e o regimen cooperativo puro não se mostra muito adequado a satisfazer esta necessidade de autonomia e independencia, propria ao pequenos proprietario agricola. Como observa Gide, os pequenos proprietarios "não se sentirão muito dispostos a pôr em commum nem os seus cavallos, os seus bois, as suas charruas, as suas machinas agricolas e os seus rebanhos e adubos, nem os seus braços e seus capitaes, para um exploração, cujos lucros se deveriam partilhar proporcionalmente á superficie das suas terras, ou ao tamanho dos seus rebanhos, ou ao vulto dos seus capitaes".

Nos nossos nucleos agricolas, de typo cooperativista, como o suggerido pelo memorial, esta incompatibilidade do regimen cooperativo com a psychologia especifica do pequeno proprietario seria tanto mais accentuada quanto maior fosse o numero de elementos nacionaes que entrassem na formação destes nucleos. O pequeno proprietario brasileiro é, mais do que nenhum outro, individualista, cioso da sua autonomia; certamente, repugnaria á sua indole esta subordinação da sua actividade, do seu trabalho e dos seus lucros a um regimen de partilha cooperativa. Mesmo os colonos europeus do Occidente - taes como os allemães, os portuguezes, os hespanhoes, etc. - não acceitariam facilmente um regimen de communidade cooperativa integral. Só os colonos de raça slava, como os russos, os polacos, os tchecos, os yugoslavos, os balkanicos em geral, só estes se subordinariam a um regimen de cooperação rigorosa - e isto porque, dada a sua formação social, não poderiam deixar de acceitar um regimen por elles praticado, tradicionalmente, nos seus meios de origem.

É verdade que se poderia citar, em contrario, o exemplo dos agricultores italianos, isto é, o que os italianos estão fazendo na sua propria terra com as suas explorações agricolas de typo collectivo. Mas, a verdade é que os contadini italianos não differem, neste ponto, dos seus irmãos do occidente europeu: apezar de terem sido os grandes realizadores de um dos mais bellos systemas de cooperativismo do mundo - o das affittanze collettive - não conseguiram, comtudo, ainda extrair da sua iniciativa os grandes frutos, que esperavam. O cooperativismo das affitanze não lhes tem sabido muito bem á sua indole individualista: é pelo menos o que nos diz Ludovico Occhini, estudando os resultados da reforma agraria operada pelo regimen fascista. Para elle, o cooperativismo agrario só se tem, realmente, revelado fecundo e efficiente ali sob a fórma de cooperativas de venda, de acquisições de machinas, ou de credito.

* Pedaço de jornal recortado, pertencente ao acervo do Ministro Geraldo Bezerra de Menezes. No mesmo jornal continha da data da publicação anotada de 10.01.1939.