Passo de Gigante

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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Pandemias (in)civilizatórias

          Há muitas análises que comparam a gripe espanhola à pandemia do novo coronavírus. Apesar das muitas semelhanças entre os vírus que dizimaram milhares de pessoas em todo o mundo, vale contextualizarmos a relação entre as epidemias e as novas formas de organização social que emergiram. Tal como no passado, vemos hoje parte da população orientada politicamente contra a ciência, contra as universidades, contra as autoridades sanitárias e, por incrível que pareça, até contra as vacinas. Então, devemos recordar o que foi uma medicina pré-moderna e sua superação.

Imaginemos uma cidade em que os mercados são as próprias ruas, com alimentos e produtos expostos pelas calçadas, dificultando o trânsito de pessoas. O mau cheiro por onde passamos, com rios poluídos se confundindo com o odor de lixos e animais. Bairros construídos de forma desordenada formando quase um labirinto de becos, misérias e precariedade. Pois bem, não estamos falando do Rio de Janeiro, mas de Londres ou Paris entre o fim da Idade Média e a consolidação de suas áreas urbanas.

A existência de pobreza, tal como a sujeira e os esgotos, passou a ser um problema com as epidemias, em especial com a propagação da cólera no século XIX. Daí o nascimento do medo em torno da articulação entre os riscos econômicos, sanitários e políticos. Como demonstra Michel Foucault, em “Microfísica do Poder”, nesse cenário caótico a medicina se desenvolve com as transformações das estruturas urbanas, tanto para responder à necessidade de controlar os pobres quanto para evitar as doenças e as epidemias. Era necessário disciplinar os corpos nesses amontoados humanos, assim como contabilizar os óbitos, padronizar a prática médica, organizar os cemitérios, cuidar e tratar os esgotos e as águas. Enfim, emergem duas noções importantes: a salubridade e a higiene pública.

Um símbolo dessa mudança paradigmática é a diferença do tratamento entre a lepra e a peste. Seguindo uma lógica pré-moderna, quando um leproso era descoberto ele era expulso do convívio, colocado para fora dos muros da cidade. De outro lado, para responder à peste, em vez de expulsar, utilizou-se o poder político da medicina para segregar e distribuir os indivíduos, individualizá-los e vigiá-los. Dessa forma, foi possível entender como a doença evoluía, realizar um registro controlado de cada caso, inspecionar o território e as casas.

O medo dos pobres, das revoltas e das epidemias fez surgir, na Inglaterra, os sistemas de health service e health officers (1875). Procurava-se realizar o controle de vacinação, organização e registro de epidemias e a localização/destruição de lugares insalubres. Esse mesmo sistema que surge na Inglaterra no século XIX foi a inspiração para a criação do SUS, no Brasil, em 1988. O sistema inglês está entrando em seu terceiro século de existência, enquanto o SUS está completando apenas três décadas. Para o enfrentamento da atual pandemia temos como fator positivo, mesmo que em suas fases iniciais de estruturação, o maior sistema público de saúde pública do mundo.

Há uma semelhança com o sistema inglês em suas origens, que é o enfrentamento de grupos de natureza política/religiosa e messiânica que defendem o direito das pessoas de não passarem pela medicina oficial, o direito de se curar e morrer como quiserem. Uma espécie de liberalismo, como se a responsabilidade pública pudesse ser diluída em responsabilidades individuais, como se não houvesse uma relação entre a miséria e a opulência. Por isso, uma das lutas mais importantes que travamos hoje é a da memória, tanto daqueles que perdemos na pandemia, quanto das conquistas civilizatórias.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

CONFRATERNIZAÇÃO ACADÊMICA

“O Estado” – Niterói, 6 de agosto de 1933


É bem uma quadra de verdadeiro renascimento que ora oferece o Brasil. A mocidade estudiosa promovendo, incentivada pelos innumeros Centros e Diretórios de nossas escolas superiores, o intercambio e a approximação de seus representantes tem dado provas evidentes de sublimes aspirações baseadas todas, unicamente, no desejo de possuir uma pátria melhor, mais enérgica e capaz de maiores feitos.

Iniciativas de tamanho vulto, que visam ideias tão bellas, traduzem o espírito de classe e merecem o apoio de todos nós, são dignas dos maiores louvores e dos mais sinceros applausos.

E foi neste ambiente que há pouco recebemos as embaixadas gaúchas e pernambucanas chefiadas por eminentes mestres, as quaes, partindo de plagas distantes, aqui estiveram no desempenho de tão elevada e nobre missão. A mocidade brasileira, então representada por uma luzida plêiade de estudantes destes três Estados, uma eloquente manifestação de fraternidade e em perfeita comunhão de ideais, augurava para o futuro das relações mais estreitas e solidas entre os seus componentes.

Agora, são os acadêmicos fluminenses que, em retribuição à visita dos dignos collegas, estão de malas promptas prestes a zarpar para Recife numa jornada de confraternização. A frente da comitiva, e representando o corpo docentes da Faculdade de Direito de Nictheroy, seguirão o jovem e brilhante professor dr. Telles Barbosa, cujos esforços, em prol dessa realização, têm sido incalculáveis e o dr. Oscar Przwodowski, também figura destacada da Congregação.

Baseado nos princípios de solidariedade e demonstrando mais uma vez o seu alto espirito de equidade, foi que o interventor do Estado do Rio de Janeiro, comte. Ary Parreiras se prontificou a auxiliar tanto quanto possível aos jovens estudantes fluminenses na execução do magno emprehendimento.

Visto como essa iniciativa ecoasse favoravelmente nos meios officiaes, cumpre continuar nessa obra de congraçamento universitário, preparando a juventude e estimulando-a nos estudos, para que as novas gerações se tornem condignos filhos da pátria estremecida e mais tarde lhe saibam guiar os gloriosos destinos. Comprehenda, pois, a mocidade o alto alcance do papel que representa no Brasil.

Geraldo Bezerra de Menezes.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Antimanual de economia

por Bernard Maris, 2004.

INTRODUÇÃO: é preciso rir dos economistas?

"Nós começamos a rir quando lembramo-nos das previsões dos economistas em 1914: a guerra não dura alguns meses, os Estados não tem recursos para mais tempo"
Paul Léautaud, Jornal, 27/01/1932

Devemos rir? Oh não! Eles são muito sérios! Tão sérios que "a economia, eu não a compreendo", admitido pela maioria das pessoas. "Eu não compreendo nada", frase que ouvimos constantemente quando confrontados a um problema econômico? Seguido imediatamente por: "de fato, a bolsa de ações... você acha que vai continuar a cair?"

Bem, vamos procurar compreender.

Que a economia seja muito complicada parece uma garantia de seriedade. E se os economistas se escondem atrás de um jargão? De que eles estão falando justamente? Os físicos debatem, entre outros, sobre a queda dos corpos e da expansão do universo, os químicos dos explosivos, os biólogos das mutações genéticas, dos OGM que eles fabricam, da clonagem e da aids... Mas e os economistas? Eles são tão diferentes dos sociólogos, dos psicólogos, dos filósofos? "E como, então!", exclamam, argumentando com os novos bairros da nobreza da sua disciplina, santificada por um prêmio Nobel. Na verdade, esse prêmio é oferecido pelo banco da Suécia em homenagem a Alfred Nobel e não é um prêmio verdadeiro, concedido pela Fundação Nobel. Mas isso não muda nada! Eles tem o Nobel (1). Os economistas - professores da universidade ou do Collège de France, os especialistas, analistas, os jornalistas econômicos que fazem suplementos econômicos - gostariam muito parecer com os físicos. Eles são verdadeiros sábios? Em todo caso, tratam-se de homens importantes, podemos perceber no momento das discussões sobre orçamento, de leis sobre o prolongamento do trabalho da população ativa ou redução dos impostos para alguns, sobre as eleições, sobre as greves, sobre as crises. Eles são mesmos cada vez mais influentes, se julgarmos pela explosão de suplementos econômicos. Mesmo um semanário como Charlie Hebdo tem uma página econômica.

(1) Mas é verdade que não existe qualquer prêmio Nobel em matemática, devido às obscuras razões de ciúme ou adultério, Alfred Nobel detestando um certo matemático celébre. 

Download do livro pelo site: http://digamo.free.fr/maris13.pdf, em 07 de janeiro de 2016, tradução livre.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Os 3 "s" da Petrobrás

Da crise, a oportunidade:
venderam o pré-sal 
como bilhete premiado,
vã(n)glória da riqueza
   - (s)em trabalho.

Em sociedade hodierna, 
com o petróleo seremos,
no máximo, um Iraque,
vã(n)glória da riqueza
 - (s)em guerra.

Apoiando uma nação
na venda do seu solo, minérios,
água e animais
absteremos do Bras
em detrimento do Petro
vã(n)glória da riqueza
 - (s)em natureza.



Rodolfo Lobato
2015

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Os leões e os medos

“Aqueles leões não emergiram do mato. Eles nasceram do último conflito armado. Repetia-se, agora, a mesma desarrumação de todas as guerras: as pessoas tornaram-se animais e os animais tornaram-se gente. Durante as batalhas, cadáveres foram deixados no campo, nas estradas. Os leões comeram-nos. Naquele preciso momento, os bichos quebraram o tabu: começaram a olhar as pessoas como presas. O cego, enfim, encerrou o longo discurso:

- Já não somos donos, nós os homens. Agora, eles mandam no nosso medo.

Depois discorreu com eloquência e sem interrupção:

- Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar dos soldados do exército português. Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso, fizeram com que as suas vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós mesmos.

O velho falava como se discursasse, pleno de certeza. Naquele momento, ele era um soldado. Uma imaginária farda cingia-lhe a alma.”


Mia Couto, em "A confissão da leoa"

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Uma sexta-feira 13 de 2015

Lá estava o velho Francisco assistindo o Jornal Nacional quando Willian Bonner, com ar tenso, diz que os ataques terroristas em Paris foram um crime contra a civilização: "Os valores da Democracia e da Liberdade foram ameaçados" - reforça o jornalista. Nesse momento, o velho professor de português e filosofia da cidade de Mariana (MG) corre imediatamente até uma livraria e compra um livro. Esse livro é embrulhado numa sacola plástica contra a lama, a água e o tempo, e é guardado em uma caixa para ser entregue através do seu filho. Com o seguinte bilhete escrito com os dedos tremidos: "Filho, estou no final da minha vida,  entregue esse livro para o meu neto que vai nascer. Isso para que ele saiba que entre nós, há algum tempo, também tínhamos na civilização a Fraternidade".

domingo, 18 de outubro de 2015

Chopin

Confuso e rápido
Loucura da pressa
Embriagado fico
Numa felicidade cega

Vejo o fluxo do rio que passa
E de todos que somos, essa massa,
Agarramos, amamos o que se vai

Tristeza, melancolia futura
De um passado que é
Mais do que um instante qualquer...
Desenho, retrato ou pintura.

De repente o movimento lento, que ira!
Não sei pra onde olhar
Mas como numa mágica
Surge do nada uma trilha.

De pontos sozinhos
Compostos em harmonia
Saem o voltam seguidos
De grande sinfonia.

Rodolfo Lobato, 2003