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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Os leões e os medos

“Aqueles leões não emergiram do mato. Eles nasceram do último conflito armado. Repetia-se, agora, a mesma desarrumação de todas as guerras: as pessoas tornaram-se animais e os animais tornaram-se gente. Durante as batalhas, cadáveres foram deixados no campo, nas estradas. Os leões comeram-nos. Naquele preciso momento, os bichos quebraram o tabu: começaram a olhar as pessoas como presas. O cego, enfim, encerrou o longo discurso:

- Já não somos donos, nós os homens. Agora, eles mandam no nosso medo.

Depois discorreu com eloquência e sem interrupção:

- Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar dos soldados do exército português. Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso, fizeram com que as suas vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós mesmos.

O velho falava como se discursasse, pleno de certeza. Naquele momento, ele era um soldado. Uma imaginária farda cingia-lhe a alma.”


Mia Couto, em "A confissão da leoa"

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