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quarta-feira, 24 de outubro de 2012


Cartas da biblioteca de um poeta, por Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa (rodolfolobato@hotmail.com), Niterói, 24 de outubro de 2012.
APRESENTAÇÃO

Quando guardamos os nossos livros há várias formas possíveis de organização, algumas idiossincráticas, outras necessárias ou funcionais. E entre as páginas de um livro encontramos às vezes enigmas, sejam nas formas de marcações, lembretes, recados, telefones, declarações, nomes de desconhecidos ou conhecidos. Esse texto quer apenas apresentar três cartas que encontrei em três livros, que hoje compõem uma biblioteca em formação.

Enquanto o ato de catalogar permite que encontremos com mais facilidade o livro desejado, o ato de procurar permite que o objeto desejado possa ser conjugado com escritos/desejos esquecidos, sonhos, passados e presentes do destino. O objetivo desse texto é única e exclusivamente de socializar três cartas, presentes de herança:

Carta 1: intitulada “Isto você não poderá ler nos jornais”, assinada pelo Comitê de Defesa dos Presos Políticos no Brasil (USP, 06/04/1974), uma herança coletiva;
Carta 2: “Détaille du Combat de l'Escadre", escrita no dia 31 de outubro de 1782;
Carta 3: uma carta do meu avô paterno para meu avô materno, em 1954.

Esse texto surge como subproduto de um trabalho da disciplina de Metodologia Científica do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, da Universidade Federal Fluminense. Ao refletir sobre a as "referências bibliográficas" do projeto de mestrado coloquei-me a questão do quanto a Biblioteca construída ao longo da vida permanece enquanto um mundo inconsciente de referências, histórias e mitos que, querendo ou não, deixam marcas e cicatrizes em nossos cosmos.

INTRODUÇÃO

Antes, gostaria de fazer algumas ressalvas. Há um purismo, com certa razão, que deseja conservar as páginas “limpas”, para que outros possam desfrutar no futuro dos respectivos livros. Mas, na verdade, quando o livro passa pela mão de alguém, transforma-se o livro e o leitor. Seja pelo conteúdo escrito pelo autor ou pelo conteúdo produzido pelo leitor.

O livro é, também, um lugar, a força/gravidade exercida pela sua existência precisa ser trabalhada, principalmente, quando eles deixam de ser individuais e passam a ser coletivos, a biblioteca. Para um observador externo, não apaixonado pelas letras, a biblioteca não passaria de um lugar funcional. Sua missão seria guardar, colocar à disposição e, também, uma espécie de memória longínqua. E, assim, guarda outros tipos de informações que não querem ser encontradas.

De quatro avós recebi de herança bilhetes para algumas viagens, viagens essas para o passado. Pela minha mãe, tenho um meu avô de raízes portuguesa e indígena (Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes) que casou com minha avó, filha de portugueses (Odette Machado Pereira). Pelo meu pai, tenho meu avô com raízes portuguesa e africana (Aulomar Lobato da Costa) e minha avó de origem francesa (Maria de Lourdes Duboc Pinaud).

Quando brincávamos, eu e meus primos, ainda pequenos, meu avô Geraldo sempre aconselhava-nos a quebrar todo alçapão de pássaros que encontrávamos nas trilhas da Serra da Tiririca. A sensação de prender o pensamento em determinadas prateleiras, fechadas num universo único e conjuntural do bibliotecário (seja a bilblioteca pessoal ou coletiva) é uma ilusão e uma crueldade. As prateleiras podem se comportar como prisões para determinados livros, que precisam ser alcançados pelos olhos não só de quem os procura, mas, também, de quem não os procura.

Toda biblioteca possui sessões, cessões e seções. Arrisco falar que do latim (Sessio, onis - ação de sentar-se, assento, cadeira, pouso, audiência, reunião[1]) surgiram formas posteriores que, para além de "sessão" original, desenvolveu-se o ato de dar posse de algo ao outrem (cessão) ou mesmo a organização formalizada em repartir, seccionar (seção).
Nesse sentido percebemos a biblioteca não como uma entidade imóvel, uma grande construção ou uma grande pedra. A crítica à imobilidade ou a sua perenidade encontra numa ficção de Jorge Luis Borges (“O Jardim de caminhos que se bifurcam”) uma história que pode ser útil para conjugar a biblioteca como lugar para a biblioteca como tempo. Trata-se de Ts’ui Pen:

“douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, enxadrista, famoso poeta e calígrafo: abandonou tudo para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Ao morrer, os herdeiros encontraram manuscritos caóticos. A família, como talvez o senhor não ignore, quis adjucá-los ao fogo; mas seu testamenteiro – um monge taoista ou budista – insistiu na publicação.” (p.102 e 103)

Podemos traçar um paralelo entro o labirinto e a biblioteca, que são, com suas respectivas naturezas distintas, enigmas; e como Ts’ui Pen acreditava que o tempo não é uniforme ou absoluto, temos o “tempo” como charada ou parábola a ser transcrita num livro que não seja finito. Assim, o “tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros” (p108).

CARTA 1  - Vasculhando um sebo no centro de Niterói encontro, por acaso, um papel dobrado em quatro partes. Com as folhas já marcadas com o amarelo do tempo, mal digitada, como alguém que digita rapidamente um texto. Um digitar que reforça a ideia de medo e violência dos anos que se seguiram à ditadura militar de 1964.

O texto, expressão da luta pela liberdade dos presos políticos no Brasil, tem sua origem na Cidade Universitária da USP, mais precisamente do Comitê de Defesa dos Presos Políticos. Comitê, que tinha os seguintes objetivos:

Divulgar toda prisão ou quaisquer arbitrariedades que venham a ocorrer nos diferentes setores da população, comprometendo-se com a integridade física da pessoa detida; Divulgar o número e as condições atuais dos presos políticos no país; 3 - Promover assistência jurídica às pessoas presas; Promover o amparo material (financeiro) aos familiares dos detidos.
Um movimento assinado por estudantes, familiares dos presos políticos, representantes da Igreja, MDB e advogados. A carta tem a seguinte introdução:

"Na última semana, só em São Paulo, foram presas 33 (trinta e três) pessoas ligadas ao meio universitário. O fato passaria despercebido não fosse a quantidade de pessoas presas de uma só vez. [...] a imprensa nada informa. O imenso controle policial imposto ao país nesse momento impede qualquer manifestação possível do povo brasileiro, que não perdeu o hábito de duvidar, de exprimir suas idéias livremente, de discordar abertamente de um regime que o vem prejudicando há mais de dez anos. [...] Os intelectuais não podem apresentar suas obras ao público. Os trabalhadores não podem reivindicar maiores salários: atualmente ocorrem prisões em massa nos meios sindicais."

Com o aviso "LEIA - DIVULGUE - REPRODUZA E DENUNCIE", a carta pedia a urgente ação diante dos seguintes desaparecidos políticos:





CARTA 2 - A segunda carta aqui descrita apresenta um desafio enorme para a compreensão, não só por ser escrita em francês, mas por ser escrita em um francês do século XVIII. Não se trata apenas de um exercício de tradução, mas, também de compreender outra forma de caligrafia.

O texto intitula-se "Détaille du Combat de l'Escadre", escrito no dia 31 de outubro de 1782. A tentativa de reprodução da caligrafia do autor foi a forma que utilizei para descobrir quais eram as letras para, depois, tentar traduzir alguns trechos.




Mas, ao abrir o documento, com cerca de 10 páginas, fui obrigado a interromper o trabalho, pois as páginas estavam comprometidas pelo tempo. E apenas um trabalho profissional permitirá descobrir quem foi o autor e para quem foi destinada essa carta.

A parte ainda legível do texto permite compreender os acontecimentos referentes a uma batalha entre uma esquadra de navios franceses contra uma esquadra de navios ingleses em uma falsa baía. Detalhes em forma de desenho mostram as posições das duas esquadras antes do combate.



Esse documento será encaminhado para a Biblioteca Nacional para fins de preservação, mesmo que a ligação entre a descoberta dele entre um dos livros que ganhei de herança ainda continue desconhecida, permanecendo enigmáticas as razões pelas quais essas páginas chegaram até às minhas mãos.

Carta 3 - Por último, uma carta escrita pelo meu avô paterno para o meu avô materno em 1954 mostram laços de amizade, respeito intelectual, militância na Igreja católica e vínculos profissionais entre dois juristas, um morando na cidade do Rio de Janeiro e outro em Niterói. Destaco que nesse dia (10 de fevereiro de 1954) meu pai (Fernando Pinaud Lobato da Costa) tinha menos de um ano de idade, e minha mãe (Idalina Pereira Bezerra de Menezes) ainda não havia nascido, o que só aconteceria em 1957.

A carta é uma resposta ao presente enviado pelo meu avô materno, um livro de sua autoria intitulado “Doutrina Social e Direito do Trabalho”.




CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse texto não tem caráter acadêmico, trata-se apenas de uma forma de homenagear dois dos meus avós que faleceram em 2012, Odette e Aulomar.

Nos dois lados da minha família há o hábito de cuidar da sua respectiva biblioteca como fonte de conhecimento e preservação da memória. Dessa forma faço um paralelo entre a minha história familiar e da nossa civilização, que encontrou na Biblioteca de Alexandria um lugar especial para reflexão.

De uma mulher, Odette Pereira Bezerra de Menezes, que dedicou a vida para criar 15 filhos vem à minha mente a história de outra mulher, que optou em casar com a verdade, trata-se de Hipácia. Uma matemática, astrônoma e física que liderava a escola de filosofia neoplatônica de Alexandria. Ela nasceu nesta cidade, no ano de 370. Naquela época, as mulheres não tinham muitas alternativas, eram consideradas propriedades. Apesar disso, Hipácia movia-se livre e desembaraçadamente em domínios tradicionalmente masculinos. Segundo os relatos, era dotada de grande beleza e, embora não lhe faltassem pretendentes, não tinha interesse nenhum em se casar.

Correndo grande risco, Hipácia continuou a ensinar e publicar até que, no ano de 415, a caminho do trabalho, foi abordada por seguidores fanáticos de Cirilo (bispo de Alexandria), que a arrancaram de sua carruagem, rasgaram-lhe as roupas e a esfolaram até os ossos usando conchas afiadas. Cirilo foi canonizado. E a Biblioteca de Alexandria, um ano depois da morte de Hipácia, foi destruída. Sabemos que, nesta biblioteca, existiam 123 peças de Sófocles, das quais somente 7 sobreviveram, uma das quais: Édipo Rei.


[1] Página 181, dicionário de latim

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