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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

OS AFRO-BRASILEIROS





Por Darcy Ribeiro, em "O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil"


"Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. Arthur Ramos [...], prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues [...], distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba - chamados nagô -, pelos Dahomey - designados geralmente como gegê - e pelos Fanti-Ashanti - conhecidos como minas - além de muitos representantes de grupos menores de Gâmbia, Serra Leoa, Costa Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do Norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a 'Contra Costa', que corresponde ao atual território de Moçambique." p 102

"Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não intelegíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas. [...] A própria religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia." p102-103

"O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, conseguiam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de autorreconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil." p 106

"Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém - seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, viva a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado para arder como um graveto oleoso." p 107-8

"Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria." p 108

"A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, serviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária." p 108


- São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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