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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

ENTRE PRÁTICAS E RECURSOS TERAPÊUTICOS



SYLVIE FAINZANG[1].  ENTRE PRÁTICAS E RECURSOS TERAPÊUTICOS: As problemáticas de um itinerário de pesquisa. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. Número 15. Niterói, 2o semestre 2003.



-                “Assim sendo, pretendo mostrar, nesta exposição, como diferentes pesquisas, dotadas de objetos, situações de campo e problemáticas variadas, isto é, que se iniciam de forma distinta, podem ser perpassadas por questões convergentes e até mesmo permanentes.” P20
-                     “Meu interesse particular pelo estudo dos sistemas simbólicos que estão no fundamentos das práticas sociais nasceu precisamente da leitura deste livro de Marshall Sahlins (1980), [...] para todos [...] que se interessam pelas dimensões culturais que organizam os comportamentos humanos.”

A gestão intelectual e prática da doença em uma sociedade oeste-africana

-                     “Iniciei minha pesquisa na África junto aos bisa, [...] (hoje burkina faso) [...] centrei minhas pesquisas sobre as representações e as práticas relativas à doença [...] me interroguei particularmente sobre os meios pelos quais a sociedade se encontra dotada, em termos de gestão prática e intelectual da doença, para assegurar controle sobre os indivíduos. [...] Um espaço importante foi reservado aos estudos dos modelos explicativos da doença e dos acontecimentos em geral, aos quais os processos de acusação que eles particularmente suscitam e as práticas terapêuticas estavam estreitamente articulados.” P 20-1
-                     “A percepção social do evento-doença, que fundamenta a consulta adivinhatória, conduz o adivinho a relacionar os fatos e gestos dos consultantes e experiências passadas ou à projeção do futuro e, assim, elaborar relações causais entre fenômenos muitos diversos entre si.” Freqüentemente a doença é concebida como sanção infligida por poderes sobrenaturais, devido à infração às regras sociais, transgressão de tabus ou exprime a percepção de um conflito entre indivíduos ou entre grupos. Woso, príncipe transcendente ao universo. “Pensar a doença é tentar ordená-la sob encadeamento temporal e a lógica de eventos múltiplos. É legitimar a obediência a comportamentos sociais específicos, situados sob pontos diversos da seqüência causal, suscetíveis de lhe modificar o curso. [...] a instituição adivinhatória assume um papel de controle social.” P 21-2
-                     “A diferença é que uns (os comportamentalistas) o produzem, enquanto outros (os adivinhos) nada mais fazem do que interpretar os eventos e designá-los enquanto tais. Assim, é a gestão intelectual do evento que determina as práticas sociais.”
-                     “se levarmos em consideração precisamente a incidência do uso da categoria Woso sobre as práticas sociais, perceberemos, por um lado, que certas representações da doença são totalmente afuncionais e, por outro, que os indivíduos recorrem, às vezes, à categoria Woso para escapar à análise advinhatória, exprimindo, assim, uma resistência ao controle social.” P 22

A interpretação da doença em um distrito da região parisiense

-                     “Assim, no Ocidente, como na África, a interpretação que os sujeitos fazem da doença e os motivos que permeiam os recursos terapêuticos colocam em jogo os sistemas de pensamento e representações do real, extrapolando enormemente o domínio estritamente médico. O antropólogo deve então se dedicar a estudar e decodificar estes aspectos.” P 23
-                     “procurei colocar em relevo, a partir do que o estudo da antropologia da doença pode nos trazer sobre estas sociedades, quais são os pontos comuns nos seus respectivos sistemas simbólicos. [...] E que, para além das diversidades culturais, podemos identificar aspectos universais no que diz respeito à relação com o mal, com a doença e com os infortúnios em geral. O objetivo desta pesquisa era perceber como as representações da doença se integram a outros sistemas simbólicos; revelar as lógicas que conduzem aos recursos terapêuticos, em particular, estudar a articulação e a coerência entre representações da doença e estratégias terapêuticas; e perceber como estas últimas se articulam, por sua vez, com a especificidade cultural dos diferentes grupos.” P 23-4
-                     “Um dos grandes eixos da minha pesquisa consistiu, portanto, em enumerar e trazer à tona os diferentes modelos explicativos da doença. Para tanto, dei atenção particular aos processos de acusação desencadeados pela sua aparição; e aos sistemas de pensamento que os fazem surgir. Enfim, de maneira mais ampla, tentei entender suas condições de existência.”
-                     “Os resultados da pesquisa me permitiram constatar que o discurso social sobre a doença pode ser visto como uma linguagem de tensões sociais, fornecendo o meio de expressão da tensão entre os indivíduos e entre os grupos. [...] Ele é revelador de conflitos interpessoais e sociais. Conseqüentemente, dei-me conta de que, nas sociedades em que a bruxaria tem relevância (seja na África ou na França), falar de doença é anunciar a relação do doente com os outros [...] O discurso sobre a doença funciona, portanto, como uma grade de leitura de relações sociais e se exprime segundo modalidades específicas, de acordo com o pertencimento cultural dos sujeitos.” P 24-5
-                     “O conjunto de estudos de casos realizados nos diferentes meios culturais estudados me conduziu a reconhecer quatro modelos de acusação: 1. a auto-acusação; 2. a acusação de um outro próximo (ou familiar); 3. a acusação de um outro distante (ou estranho); 4. a acusação da ‘sociedade’.”
-                     “Assim, o estuda da causalidade nas sociedades de linhagem revela a referência massiva ao modelo de auto-acusação e ao modelo de acusação do Outro. Em contrapartida, não se encontram nos discursos produzidos pelas sociedades de linhagem os modelos de acusação da sociedade, tais como eles são formulados pelas sociedades ocidentais. [...] os discursos interpretativos africanos revelam uma resistência à reprodução almejada pela etiologia social, eles jamais colocam em questão os valores partilhados. Eles tendem somente a promover estratégias pessoais, que não visam ser denunciadoras da ordem social. Distinguem-se, assim, dois modelos de causalidade: uma causalidade subversiva e uma reprodutiva.”
-                     “Mas ela [minha perspectiva] procurou igualmente se distinguir daquela elaborada por antropólogos, para os quais não existe diferença entre experiência científica e experiência mágica. Meu propósito foi, ao contrário, mostrar a profunda analogia entre os modos de pensamento tradicionais africanos e os modelos teóricos da sociedade ocidental.” P 25-6
-                     “A observação revela que a interpretação que os sujeitos têm da doença possui uma incidência sobre os recursos terapêuticos, assim como sobre os seus comportamentos quotidianos.”
-                     “Como o discurso sobre a doença corresponde a uma grande leitura das relações, que o sujeito estabelece com os seus próximos ou com outros grupos sociais, a significação adotada não pode ser imediatamente abandonada. Ignorá-la é abandonar a acusação pela qual as relações se estabelecem. É negar a validade do olhar que o sujeito incorpora sobre a sua inscrição social. (FAINZANG, 1988, 2000).”
-                     “Em cada um destes casos, a conduta terapêutica do doente é função da lógica interpretativa à qual ele adere. A propensão do doente a dar um sentido à sua doença e a lhe atribuir uma causa leva-o a procurar a medicina que lhe oferecerá – pelo diagnóstico que ela elabora – o máximo de coerência com sua própria percepção da doença. Em decorrência, a prescrição que possa ser considerada como a mais adequada para responder eficazmente ao seu caso particular.”p 27

Sexualidade e reprodução no meio africano imigrante

-                     “o Ministério dos Direitos da Mulher me solicitou a realização de uma pesquisa sobre as mutilações sexuais no meio africano imigrante. Assim, entrei em contato com mulheres originárias do Mali e do Senegal com o objetivo de discutir com elas as práticas relativas à clitoridectomia, [...] estas mutilações revelavam o desejo de inscrever as relações sociais sobre os corpos.”
-                     “Os materiais coletados revelam, de fato, o que o ‘trabalho’ realizado sobre os corpos não visa somente confirmar a diferença biológica entre os sexos, mas também corrigir o sexo biológico de maneira a tornar possível, para a pessoa socializada como feminina ou masculina, o estatuto que lhe é atribuído. E, nessa medida, reduzir ou suprimir o que, na mulher, é concebido como equivalente do sexo masculino, criando então condições (fisiológicas) de dominação (social) do homem sobre a mulher.” Relação entre excisão e circuncisão. P 28

Representações e gestão do alcoolismo em um movimento de antigos bebedores

-                     “Assim que terminei minhas pesquisas sobre a interpretação da doença em Ville-du-Bois, fui levada a dar um certo direcionamento ao objeto de estudo, passando da doença em geral para a ‘doença alcoólica’ em particular, e, mais precisamente, a um movimento de antigos bebedores: Vie Libre.” P 29
-                     “Assim, segui a questão da interpretação da doença, estudando os modelos explicativos do alcoolismo, conforme são elaborados no seio do movimento dos antigos bebedores Vie Libre. Enquanto para a maioria dos etnólogos tomar o alcoolismo como objeto é levar em consideração o alcoolismo como um modo de vida, ou o traço de uma cultura, eu, ao contrário, tratei de restituir o ponto de vista êmico de uma associação de antigos bebedores, retendo a equivalência ‘alcoolismo-doença’.” P 30
-                     “Conduzi, desta forma, uma reflexão sobre a teoria da causalidade elaborada a propósito do alcoolismo por este movimento. Todavia, os discursos explicativos do alcoolismo não se reduzem ao discurso doutrinal. [...] A questão da relação que o indivíduo mantém com a doença se integra inevitavelmente à problemática da relação frente ao Outro. [...] Desse modo, também procurei compreender o que representa e simboliza o álcool nesta perspectiva. Trata-se de saber se a eficácia de adesão do sujeito a este tipo de associação é tributária da adoção de certos esquemas de causalidade e, eventualmente, de uma reconversão no plano da percepção das causas do alcoolismo e da imputação de responsabilidades, questão que se relaciona com a dos sistemas interpretativos da doença. [...] Assim, a pesquisa permitiu observar a imbricação de vários tipos de discursos, cuja coexistência se torna possível pela sua adaptação tanto ao discurso doutrinal do movimento Vie Libre, quanto à responsabilidade que ele atribui ao álcool, enquanto encarnação metonímica da sociedade.” P 30-1
-                     “O estudo do sistema simbólico articulando as representações dos efeitos do álcool sobre o corpo do alcoolista (em particular, sobre importantes órgãos como o cérebro, bem como nervos e sangue) e o papel destas desordens fisiológicas sobre a formação de seu comportamento social permitiram compreender, por exemplo, as razões das reticências manifestadas pelos homens alcoolistas com o tratamento psiquiátrico.”
-                     “Vie Libre gerencia, de uma maneira específica, a identidade do doente.” P 32
-                     “Por outro lado, o trabalho de campo me permitiu constatar que, no Vie Libre, cônjuges dos doentes, mesmo que não bebedores, tendem a se considerar doentes tanto quanto os próprios alcoolistas, atribuindo sua doença ao contágio. [...] Este dado me conduziu à investigação sobre o conteúdo da idéia de contágio. As representações do alcoolismo como doença ‘contagiosa’ [...] enraizadas na noção de doença coletiva desenvolvida pelo movimento, não são resultantes de um desconhecimento das modalidades de emergência desta ‘doença’, mas da tradução de uma concepção de alcoolismo que lhe atribui a capacidade de afetar fisiologicamente os indivíduos que se encontram em uma relação social estreita com o doente.”
-                     “Minha tarefa era, portanto, compreender o sentido de condutas aparentemente incoerentes (como, por exemplo, o fato de um doente recorrer a uma instância terapêutica que ele julgue menos eficaz) e saber o que está em jogo na determinação destes recursos. [...] O estudo das situações em que esta defasagem pudesse ser observada evidenciou os motivos ou os empreendimentos capazes de explicá-la, mediante a proposta da noção de ‘estratégias paradoxais’. Por esta noção, designei tanto as condutas adotadas com fins terapêuticos, mas geradoras de condições patológicas capazes de reforçar o mal contra o qual o sujeito procura lutar [...] Trata-se de estratégias adotadas, de maneira explícita, para resolver um problema de saúde, e, de maneira implícita, para responder a outras necessidades, dando lugar a uma outra lógica.” P 32-3
-                     “Hoje, todavia, parece-me necessário distinguir: de uma parte, as condutas elaboradas com fins terapêuticos, mas cujos efeitos são contrários; e, de outra parte, as condutas que são elaboradas com outros fins não terapêuticos, porque elas são supradeterminadas por outras questões (mas seguidamente de ordem relacional).”

As atitudes culturais em face da receita e dos medicamentos

-                     “[...] decidi estudar as condições de uso da receita médica [...]” p 34
-                     “fixei-me sobre as relações entre representações e práticas sociais relativas à doença, desejei compreender a relação entre o pertencimento cultural e as estratégias terapêuticas, limitando o pertencimento cultural à origem religiosa, e as estratégias terapêuticas às condutas quanto às prescrições médicas.”
-                     “O conjunto dos resultados obtidos revela a relação que estes pacientes, e diferentes grupos culturais, mantêm com a autoridade médica, comparável com a atitude dos pacientes praticantes diante da autoridade religiosa. Além do nível sociocultural dos indivíduos, observamos, por exemplo, mais por parte dos pacientes de origem católica e muçulmana do que por parte dos pacientes de origem judia e protestante, uma submissão mais forte em relação ao médico.” P 35

A mentira na relação médico-paciente

-                     “Portanto, decidi investigar particularmente a prática da mentira e estudá-la como uma prática social como tantas outras, para analisar os resultados e suas significações de um ponto de vista antropológico. Esta prática ainda me interessava pelo fato de que ela correspondia  ao que eu considerava como ‘condutas paradoxais’. [...] A mentira se apresenta como um paradigma da conduta paradoxal, pois ela consiste em esconder a realidade e, conseqüentemente, em impedir o médico de exercer plenamente seu papel.” P 36
-                     “No entanto, a mentira não é uma conduta apenas dos pacientes, ela é também praticada pelos médicos. [...] por mais racional que ela possa ser (por razões sociológicas e/ou terapêuticas, a mentira do médico é comumente objeto de uma racionalização, uma vez que é pelo ‘bem’ do paciente que o médico mente) [...] Enfim, a mentira apresenta-se como um produto da relação médico-paciente e escapa à explicação pela razão terapêutica, uma vez que ela é subentendida pelas lógicas culturais e sociais.” P 36-7


[1] Pesquisadora do INSERM – Institut National de la Santé et Recherche Médicale e do CERMES – Centre de Recherche Médécine, Sciences, Santé et Societé.

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